sábado, 12 de maio de 2012

Práticas comuns no meio neoateísta e a realimentação do preconceito contra os ateus

Pode-se perceber que, desde o ano passado, vem crescendo enormemente, ao menos no Brasil, o movimento ateísta na internet, que ora luta pelo respeito aos direitos e à dignidade dos ateus por parte da parcela teísta da sociedade, ora se investe em criticar as religiões em seus fundamentos filosóficos, morais e práticos. Mas uma parcela notável dessa militância tem se enveredado num caminho, baseado no vale-tudo para desqualificar as crenças das pessoas, que é justamente contraproducente a esses dois propósitos.


Os ateus cobram respeito ao restante da sociedade, mas parte significativa deles está fazendo muito para desmerecê-lo. Críticas difamatórias, reducionistas e falaciosas às religiões em geral; ataques preconceituosos às mesmas e mesmo blasfêmias gratuitas injustificáveis acabam desmoralizando a categoria ateísta e deslegitimando o propósito do estabelecimento de uma cultura de respeito mútuo às diferenças.

É perceptível, aliás, que muitos descrentes querem não estabelecer essa cultura tolerante, mas sim transformar toda as pessoas em ateus e ateias e tornar as religiões algo pertencente ao passado. São os chamados neoateus, que investem boa parte de suas horas de internet para dirigir críticas, muitas delas bastante pesadas, às crenças religiosas em geral.

Muitas dessas críticas são válidas quando questionam, por exemplo, versículos moralmente questionáveis da Bíblia e do Corão e repudiam as tantas violências e ameaças de retrocesso ético perpetradas ao longo dos séculos e na atualidade em nome do Deus monoteísta. Mas perdem a razão quando passam a usar de reducionismos e falácias para desqualificar todas as religiões.

Esses vícios argumentativos são bem visíveis naquelas imagens-panfleto, compartilhadas no Facebook, que tentam estabelecer dicotomias entre religião (genericamente falando) e ateísmo; mundo com religiões e mundo sem religiões; religião e ciência; etc. Diversas dessas figuras já foram criticadas no Consciencia.blog.br.

Comete-se ali a falácia dupla de inversão do acidente e generalização apressada, ao tornar todas as religiões – incluídas também as vertentes liberais das religiões abraâmicas, as religiões-filosofias orientais de caminho, as tão diversificadas religiões pagãs e neopagãs, as crenças monoteístas não abraâmicas (como a Fé Bahá’i, o sikhismo e o espiritismo), as crenças espirituais autóctones (o que inclui espiritualismos indígenas e as religiões populares chinesa e africanas), o xamanismo, o animismo e os sincretismos – exatamente similares às correntes fundamentalistas cristãs, judaicas e islâmicas.

Além disso, são cometidos erros crassos de História e Sociologia, ao se insistir em reproduzir as já refutadas crenças iluministas de que a Idade Média teria sido uma “Idade das Trevas” de completa estagnação científica e tecnológica na Europa e que a substituição completa da religiosidade e da espiritualidade pela Razão e pela Ciência traria felicidade e progresso à humanidade; ignorar que o Império Islâmico medieval vivenciou importantes avanços científicos e protegeu obras filosóficas da Europa Antiga; omitir que as religiões em geral continuam tendo uma importância filosófica – tendo destaque as religiões orientais de dharma –; generalizar àquela religião em todas as suas denominações o fundamentalismo de apenas uma porção de suas vertentes; passar adiante a mentira de que a ciência e sabedoria antigas teriam sido totalmente destruídas na Idade Média europeia; entre tantos outros erros.

E isso sem falar na total falta de senso antropológico por parte de grande porção dos neoateus, ao não reconhecerem as importâncias gnosiológicas das religiões – que existem em campos do conhecimento humano diferentes da Ciência e da Engenharia, como a Cultura, a Mitologia e parte da Psicologia e da Filosofia – e não tentarem entender por que as pessoas continuam religiosas e apegadas aos velhos folclores – ou mesmo aderem a outras religiões depois de se desiludirem com aquelas de onde vieram – apesar de todos os avanços da Ciência, do secularismo e da expansão da literatura racionalista.

E um outro ponto muito grave da militância neoateísta que se tem observado é a recorrência aos puros insultos e blasfêmias, tratando as religiões em geral como puros rejeitos ideológicos, escarnecendo de figuras de deuses e santos, substituindo o nome de Deus por de personagens de desenhos animados (mais notadamente Goku, da franquia japonesa Dragon Ball), entre outras evidentes ofensas.


O deus hindu Ganesha é desrespeitado ao ser comparado a uma aberração genética. Imagem reproduzida do Facebook, de autoria anônima.

Afirmam os integrantes dessa modalidade de militância ateísta: “Respeitamos pessoas, e não crenças”. Essa frase faz sentido quando a intenção do indivíduo ou do movimento como um todo é criticar as “verdades” trazidas pelas religiões, ainda mais aquelas que conflitam com o nosso contexto ético-moral, e negá-las enquanto dogmas que não deveriam ser questionados. Mas perde a razão quando é usada no propósito do achincalhamento gratuito das crenças.

Queiram ou não os ateus, as pessoas afetadas quando, por exemplo, veem a figura de Jesus escarnecida acreditam na(s) divindade(s) profanada(s). E isso ofende não tanto a elas próprias, mas, em sua mentalidade, à(s) divindade(s) ofendida(s). E ofender uma divindade lhes é ainda pior do que desrespeitar a própria família delas. Mas isso acaba não passando pela cabeça daqueles que insistem em comparar Jesus a Goku ou chamar Ganesha de aberração genética. Porque não tentam entender a lógica de pensamento dos religiosos.

Tamanha agressividade parece ser o revide a décadas ou mesmo séculos de perseguição religiosa. Pensam os ateus militantes: se os religiosos em sua maioria passaram esse tempo todo nos desrespeitando, eles merecem levar o troco. Parte-se para uma política de vingança, para, numa catarse coletiva, descontar tudo o que foi sofrido ao longo de anos de discriminação.

Esse comportamento, porém, é bastante irracional e deletério se percebermos que ele se baseia mais numa sede vingativa; numa visão, como visto acima, enviesada e preconceituosa das religiões e/ou na intenção de tornar a população nacional totalmente ateia do que no próprio propósito de tornar os ateus uma categoria plenamente aceita pelo restante da sociedade.

O meio ateísta deveria refletir sobre essas ações. Elas estão mais prejudicando do que fortalecendo a reputação dos ateus. E tendem a substituir os velhos motivos de preconceito – que seríamos depressivos, amorais, tendentes ao crime e de vida vazia – por novos – que os ateus seriam odiadores de religiões e intolerantes contra as crenças das pessoas, desejariam a destruição de todos os sistemas de crença espiritual e costumariam recorrer à mentira e à blasfêmia para desqualificar as religiões.

E tudo o que os ateus menos querem é continuar sendo vítimas de preconceito e discriminação e o serem por ainda mais motivos do que os atuais. Se realmente têm o combate à ateofobia, ao invés da conversão generalizada das pessoas ao ateísmo, como prioridade, terão que rever suas práticas relativas a falar de religiões e deuses.


Nessa imagem, que tem autoria mas ela foi apagada para impessoalizar minha crítica, diversas religiões são rebaixadas a rejeito ideológico que “arruinaria a mente” das pessoas e “sujaria” o planeta. Despreza-se a riqueza filosófica e cultural presente nas crenças simbolizadas na figura e propaga-se assim o mito preconceituoso de que uma pessoa sem religião seria mais “avançada”, “madura” ou “evoluída” do que um religioso.

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