Pode-se perceber que,
desde o ano passado, vem crescendo enormemente, ao menos no Brasil, o movimento
ateísta na internet, que ora luta pelo respeito aos direitos e à dignidade dos
ateus por parte da parcela teísta da sociedade, ora se investe em criticar as
religiões em seus fundamentos filosóficos, morais e práticos. Mas uma parcela
notável dessa militância tem se enveredado num caminho, baseado no vale-tudo
para desqualificar as crenças das pessoas, que é justamente contraproducente a
esses dois propósitos.
Os ateus cobram
respeito ao restante da sociedade, mas parte significativa deles está fazendo
muito para desmerecê-lo. Críticas difamatórias, reducionistas e falaciosas às
religiões em geral; ataques preconceituosos às mesmas e mesmo blasfêmias
gratuitas injustificáveis acabam desmoralizando a categoria ateísta e
deslegitimando o propósito do estabelecimento de uma cultura de respeito mútuo
às diferenças.
É perceptível, aliás,
que muitos descrentes querem não estabelecer essa cultura tolerante, mas sim
transformar toda as pessoas em ateus e ateias e tornar as religiões algo
pertencente ao passado. São os chamados neoateus, que investem boa parte de
suas horas de internet para dirigir críticas, muitas delas bastante pesadas, às
crenças religiosas em geral.
Muitas dessas
críticas são válidas quando questionam, por exemplo, versículos moralmente
questionáveis da Bíblia e do Corão e repudiam as tantas violências e ameaças de
retrocesso ético perpetradas ao longo dos séculos e na atualidade em nome do
Deus monoteísta. Mas perdem a razão quando passam a usar de reducionismos e
falácias para desqualificar todas as religiões.
Esses vícios
argumentativos são bem visíveis naquelas imagens-panfleto, compartilhadas no
Facebook, que tentam estabelecer dicotomias entre religião (genericamente
falando) e ateísmo; mundo com religiões e mundo sem religiões; religião e
ciência; etc. Diversas dessas figuras já foram criticadas no Consciencia.blog.br.
Comete-se ali a
falácia dupla de inversão do acidente e generalização apressada, ao tornar todas as religiões –
incluídas também as vertentes liberais das religiões abraâmicas, as
religiões-filosofias orientais de caminho, as tão diversificadas religiões
pagãs e neopagãs, as crenças monoteístas não abraâmicas (como a Fé Bahá’i, o
sikhismo e o espiritismo), as crenças espirituais autóctones (o que inclui
espiritualismos indígenas e as religiões populares chinesa e africanas), o
xamanismo, o animismo e os sincretismos – exatamente similares às correntes
fundamentalistas cristãs, judaicas e islâmicas.
Além disso, são
cometidos erros crassos de História e Sociologia, ao se insistir em reproduzir
as já refutadas crenças iluministas de que a Idade Média teria sido uma “Idade
das Trevas” de completa estagnação científica e tecnológica na Europa e que a
substituição completa da religiosidade e da espiritualidade pela Razão e pela
Ciência traria felicidade e progresso à humanidade; ignorar que o Império
Islâmico medieval vivenciou importantes avanços científicos e protegeu obras
filosóficas da Europa Antiga; omitir que as religiões em geral continuam tendo
uma importância filosófica – tendo destaque as religiões orientais de dharma –; generalizar àquela religião em todas as suas denominações o
fundamentalismo de apenas uma porção de suas vertentes; passar adiante a
mentira de que a ciência e sabedoria antigas teriam sido totalmente destruídas
na Idade Média europeia; entre tantos outros erros.
E isso sem falar na
total falta de senso antropológico por parte de grande porção dos neoateus, ao
não reconhecerem as importâncias gnosiológicas das religiões – que existem em
campos do conhecimento humano diferentes da Ciência e da Engenharia, como a
Cultura, a Mitologia e parte da Psicologia e da Filosofia – e não tentarem
entender por que as pessoas continuam religiosas e apegadas aos velhos
folclores – ou mesmo aderem a outras religiões depois de se desiludirem com
aquelas de onde vieram – apesar de todos os avanços da Ciência, do secularismo
e da expansão da literatura racionalista.
E um outro ponto
muito grave da militância neoateísta que se tem observado é a recorrência aos
puros insultos e blasfêmias, tratando as religiões em geral como puros rejeitos
ideológicos, escarnecendo de figuras de deuses e santos, substituindo o nome de
Deus por de personagens de desenhos animados (mais notadamente Goku, da
franquia japonesa Dragon Ball), entre outras evidentes ofensas.
O deus hindu Ganesha
é desrespeitado ao ser comparado a uma aberração genética. Imagem reproduzida
do Facebook, de autoria anônima.
Afirmam os integrantes
dessa modalidade de militância ateísta: “Respeitamos pessoas, e não crenças”.
Essa frase faz sentido quando a intenção do indivíduo ou do movimento como um
todo é criticar as “verdades” trazidas pelas religiões, ainda mais aquelas que
conflitam com o nosso contexto ético-moral, e negá-las enquanto dogmas que não
deveriam ser questionados. Mas perde a razão quando é usada no propósito do
achincalhamento gratuito das crenças.
Queiram ou não os
ateus, as pessoas afetadas quando, por exemplo, veem a figura de Jesus
escarnecida acreditam na(s) divindade(s) profanada(s). E isso ofende não tanto
a elas próprias, mas, em sua mentalidade, à(s) divindade(s) ofendida(s). E
ofender uma divindade lhes é ainda pior do que desrespeitar a própria família
delas. Mas isso acaba não passando pela cabeça daqueles que insistem em
comparar Jesus a Goku ou chamar Ganesha de aberração genética. Porque não
tentam entender a lógica de pensamento dos religiosos.
Tamanha agressividade
parece ser o revide a décadas ou mesmo séculos de perseguição religiosa. Pensam
os ateus militantes: se os religiosos em sua maioria passaram esse tempo todo
nos desrespeitando, eles merecem levar o troco. Parte-se para uma política de
vingança, para, numa catarse coletiva, descontar tudo o que foi sofrido ao
longo de anos de discriminação.
Esse comportamento,
porém, é bastante irracional e deletério se percebermos que ele se baseia mais
numa sede vingativa; numa visão, como visto acima, enviesada e preconceituosa
das religiões e/ou na intenção de tornar a população nacional totalmente ateia
do que no próprio propósito de tornar os ateus uma categoria plenamente aceita
pelo restante da sociedade.
O meio ateísta
deveria refletir sobre essas ações. Elas estão mais prejudicando do que
fortalecendo a reputação dos ateus. E tendem a substituir os velhos motivos de
preconceito – que seríamos depressivos, amorais, tendentes ao crime e de vida
vazia – por novos – que os ateus seriam odiadores de religiões e intolerantes
contra as crenças das pessoas, desejariam a destruição de todos os sistemas de
crença espiritual e costumariam recorrer à mentira e à blasfêmia para
desqualificar as religiões.
E tudo o que os ateus
menos querem é continuar sendo vítimas de preconceito e discriminação e o serem
por ainda mais motivos do que os atuais. Se realmente têm o combate à
ateofobia, ao invés da conversão generalizada das pessoas ao ateísmo, como
prioridade, terão que rever suas práticas relativas a falar de religiões e
deuses.
Nessa imagem, que tem
autoria mas ela foi apagada para impessoalizar minha crítica, diversas
religiões são rebaixadas a rejeito ideológico que “arruinaria a mente” das
pessoas e “sujaria” o planeta. Despreza-se a riqueza filosófica e cultural
presente nas crenças simbolizadas na figura e propaga-se assim o mito
preconceituoso de que uma pessoa sem religião seria mais “avançada”, “madura”
ou “evoluída” do que um religioso.
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