Richard Swinburne
Resumo: Argumento neste artigo que embora existam
muitas maneiras diferentes de descrever o mundo ou algum segmento dele,
qualquer maneira que deixe de acarretar logicamente uma separabilidade do corpo
e da alma como os dois componentes de cada ser humano conhecido (o corpo sendo
uma parte contingente e a alma a parte essencial do homem) deixará de fornecer
uma descrição completa do mundo.
1 Definições
Começo com algumas definições estipulativas.
Entendo por uma propriedade um universal monádico ou relacional, e por um
evento a instanciação de uma propriedade numa substância ou em substâncias (ou
em propriedades ou eventos) em um tempo. Qualquer definição de uma substância
tende a tomar como provadas as questões filosóficas, mas eu trabalharei com uma
definição que, penso, não toma como provado o problema em questão neste artigo.
Uma substância é uma coisa (diferente que um evento) que pode (é logicamente
possível) existir independentemente de todas as outras coisas daquela categoria
metafísica (i.e. de todas as outras substâncias) exceto de suas partes (A noção
de uma substância é exatamente esta – que ela pode existir por si mesma sem o
suporte de outra substância”. R. Descartes, Replies to the Fourth Set of
Objections, in (trans.) J. Cottingham, R. Stoothof e D. Murdoch, The
Philosophical Writings of Descartes, 2: 159). Assim mesas, planetas, átomos e
seres humanos são substâncias. Ser quadrado, pesar 10 kg, ou ser mais alto que,
são propriedades (as primeiras duas são propriedades monádicas, a última é uma propriedade
relacional que relaciona duas substâncias). Eventos incluem minha mesa ser
quadrada agora, ou John ser mais alto que James em 30 de março de 2001 às 10.00
a.m.
Existem diferentes maneiras de fazer a distinção
entre o mental e o físico, mas proponho fazê-la nos termos do que é de maneira
privilegiada acessível e público. Existem na literatura outras maneiras de
entender a oposição mental/físico, as mais comuns delas são as oposições
intencional/não-intencional e ciência física/ciência não física. Exponho isso
somente em termos dos eventos. Na primeira abordagem um evento mental é um
evento que envolve uma atitude em relação a alguma coisa sob uma descrição –
ele está temendo, pensando, acreditando nisto ou naquilo; quando o sujeito
necessariamente não teme, não pensa, não acredita em alguma coisa idêntica a
isso ou aquilo; um evento físico é um evento diferente de um evento mental. Na
segunda abordagem o físico é o que pode ser explicado por meio de uma física
estendida, e o mental é o que não pode ser explicado desta forma.
A primeira abordagem tem a conseqüência infeliz de
que qualidades como dores e cores não são eventos mentais; contudo, estas
qualidades são as causadoras de problemas paradigmáticos para a identidade
entre “mente-cérebro”, e devemos considerá-las como mentais se quisermos lidar
de alguma maneira com o problema tradicional mente/corpo. A segunda abordagem é
desesperadamente vaga, pois é totalmente ininteligível o que constituiria uma
ciência que incorporasse a atual física como ainda sendo uma física. Daí minha
preferência pela minha maneira de definir as propriedades “mentais” e
“físicas”, os eventos, e – de maneira análoga – as substâncias.
Uma propriedade mental é uma propriedade sobre cuja
instanciação a substância em que ela é substanciada tem necessariamente acesso
privilegiado em todas as ocasiões de sua instanciação, e uma propriedade física
é uma propriedade sobre cuja instanciação nela uma substância não tem
necessariamente acesso privilegiado em qualquer ocasião de sua instanciação.
Alguém tem acesso privilegiado sobre se uma propriedade P é instanciada nele no
sentido de que – dado que ele sabe o que é alguma coisa ter P (ou seja, tem o
conceito de P) - Agradeço a David Armstrong por mostrar que minha definição
original de “acesso privilegiado” sem a cláusula inicial “dado que” tinha a
conseqüência de que, como animais e bebês não poderiam descobrir se “estão
tendo uma imagem vermelha” etc. instanciada neles porque eles não têm os
conceitos necessários para obter conhecimento por introspecção, não poderiam
ter acesso privilegiado a essas propriedades; e disso se seguiria que não
poderia haver propriedades mentais segundo meu sentido. A cláusula adicional
torna o caráter mental de uma propriedade uma questão de se alguém que tem o
conceito daquela propriedade tem uma maneira de ter conhecimento a seu respeito
que não é disponível aos outros - quaisquer que sejam os meios que os outros
têm de descobrir isso, é logicamente possível que ele possa usar, mas ele tem
um meio adicional (experienciando-a) que não é logicamente possível que outros
possam usar. Uma propriedade mental pura pode então ser definida como uma
propriedade cuja instanciação não acarreta a instanciação de uma propriedade
física. Um evento mental é um evento sobre cuja instanciação numa substância,
aquela substância tem acesso privilegiado; e um evento físico é um evento sobre
cuja instanciação numa substância aquela substância não tem acesso
privilegiado. Um evento mental puro é um evento que não acarreta a ocorrência
de um evento físico. (A maioria dos eventos mentais, mas nem todos, implicam a
instanciação de propriedades mentais.) Uma substância mental é uma substância
sobre cuja existência aquela substância necessariamente tem acesso
privilegiado, e uma substância física é uma substância sobre cuja existência
aquela substância necessariamente não tem acesso privilegiado, isto é, uma
substância pública. Uma vez que ter acesso privilegiado a algo é isso mesmo uma
propriedade mental, e alguém que tem qualquer outra propriedade mental tem a
primeira, as substâncias mentais são exatamente aquelas para as quais algumas
propriedades mentais são essenciais. Uma substância mental pura é uma
substância cuja existência não acarreta a existência de uma substância física.
Ora, a história do mundo é a história de uma coisa e depois outra ocorrência de
coisas, num sentido de “ocorrência de coisas” que inclui tanto coisas que
permanecem idênticas e coisas que mudam. Sugiro que as coisas que ocorrem são
eventos no sentido que dou a este termo. Trata-se desta substância que existe
por um período de tempo (que pode ser analisada como tendo suas propriedades
essenciais), que chega a ter esta propriedade ou relação com outra substância
neste ou naquele tempo, que continua a tê-la e então deixa de tê-la. E eu
sugiro que não há outras coisas que ocorrem exceto eventos no sentido que dou a
este termo. Para conhecer a história do mundo precisamos de uma descrição
canônica desses eventos em termos das propriedades, das substâncias e dos tempos
envolvidos neles; e estes últimos devem ser discriminados não por meio de
quaisquer descrições definidas deles mas por meio de palavras que digam o que
eles são – designadores rígidos, mas não simplesmente quaisquer designadores
rígidos. Pois alguns designadores rígidos não nos dizem muito acerca do que
estamos falando – [o designador] ‘água’ como empregado no século XVIII ou
‘Hesperus’ (a estrela da tarde, que nós agora sabemos ser o planeta Vênus) na
própria Grécia antiga, por exemplo. (Dado que alguma coisa é ‘água’, se ela tem
a mesma essência (química) que o líquido em nossos rios e mares, então se não
sabemos o que essa essência é, como as pessoas não o sabiam no século XVIII,
não sabemos muito acerca do que estamos falando. E o mesmo vale para Hesperus
se não sabemos do que aquele planeta é feito e, deste modo, se ele é o mesmo
planeta que ‘Phosophorus”, a ‘estrela da manhã’.) Precisamos daquilo que eu
chamarei de ‘designadores informativos’. Para um designador rígido de uma coisa
ser um designador informativo é preciso que alguém que saiba o que a palavra
significa (ou seja, que tenha o conhecimento lingüístico do como usá-la)
conheça um certo conjunto de condições necessárias e suficientes (em qualquer
mundo possível) para uma coisa ser aquela coisa (quer ele possa ou não
determinar tais condições em palavras, ou possa de fato alguma vez descobrir
que tais condições são satisfeitas). Conhecer essas condições para a aplicação
de um designador é ser capaz (quando posicionado de maneira favorável, com as
faculdades funcionando perfeitamente e não sujeito à ilusão) de reconhecer
quando aplicá-lo e quando não aplicá-lo e ser capaz de fazer simples
inferências sobre sua aplicação e a partir de sua aplicação Mais precisamente,
se você tem conhecimento lingüístico das regras para usar um designador
informativo de um objeto (substância, propriedade, ou o que quer que seja),
então você pode aplicá-lo corretamente a qualquer objeto se e somente se (1)
você está favoravelmente posicionado, (2) suas faculdades estão funcionando
perfeitamente, e (3) você acredita que (1) e (2). Assim, ‘verde’ ser um
designador informativo significa que alguém que sabe o que ‘verde’ significa
pode aplicá-lo a um objeto de maneira correta quando (1) a luz é luz do dia e
ele não está muito longe do objeto, (2) seus olhos estão funcionando
perfeitamente, e ele acredita que (1) e (2). Alguém está sujeito à ilusão se ou
{(1) e (2)} e não-(3) ou {ou não-(1) ou não-(2)} e (3). Por oposição, (as
palavras designadoras tendo seus significados pré-modernos) por mais
favoravelmente posicionado que você se encontre e por mais bem que suas
faculdades estejam funcionando, você pode não ser capaz de identificar
corretamente algum líquido em nossos rios e mares como “água”, ou algum planeta
no céu ao entardecer como ‘Hesperus’. Assim “vermelho” é um designador
informativo de uma propriedade, da qual “a verdadeira cor de meu primeiro
livro” é um simples designador rígido não-informativo. Posso saber o que
“vermelho” significa no sentido de ser capaz de identificar coisas como
vermelhas, e fazer simples inferências usando a palavra sem saber que coisas em
nosso mundo são vermelhas. A competência para usar a palavra “vermelho” pode
existir sem o conhecimento de que coisas são realmente vermelhas. Mas saber
como usar a expressão “tem a verdadeira cor de meu primeiro livro” não me
habilita a reconhecer coisas diferentes de meu primeiro livro como tendo a cor
de meu primeiro livro. Quando posso designar uma propriedade (ou o que quer que
seja) por meio de um designador informativo, então eu possuo o conceito daquela
propriedade; eu sei perfeitamente o que estou dizendo acerca de um objeto
quando digo que ele tem aquela propriedade. Mesmo que, quando sujeito à ilusão,
eu confunda um objeto como vermelho quando ele não é vermelho, eu sei o que
estou dizendo quando digo que ele é vermelho. Estou dizendo que ele tem a cor
que contemplaria desta maneira se as circunstâncias fossem normais. Portanto,
se nós designamos uma propriedade (ou o que quer que seja) por meio de um
designador informativo nós conhecemos a essência do que está envolvido.
Há muitos critérios diferentes para identificar
evento, propriedade ou substância, defendidos na literatura filosófica, e
precisamos de um metacritério para escolher entres eles. Nosso presente
interesse sendo o de oferecer uma descrição completa do mundo, sugiro como um
metacritério que nós individualizemos propriedades, substâncias e tempos de tal
maneira que se alguém conhece quais propriedades (designadas de maneira informativa)
foram instanciadas em quais substâncias (designadas de maneira informativa),
eles sabem (ou podem deduzir), tudo o que aconteceu. Uma descrição canônica de
um evento dirá quais propriedades, substâncias e tempos ela envolve,
discriminando-os por meio de designadores informativos – e, conjuntamente, as
propriedades, tempos, e substâncias envolvidas formarão um designador
informativo daquele evento. Dois eventos são idênticos se suas descrições
canônicas são idênticas ou se acarretam mutuamente. Então será o caso que
alguém que sabe todos os eventos que aconteceram sob suas descrições canônicas
sabe tudo o que aconteceu (e alguém que sabe todos os eventos que aconteceram
sob suas descrições canônicas em alguma região espaço-temporal sabe tudo o que
aconteceu naquela região). Para transmitir a uma pessoa o conhecimento de tudo
o que aconteceu será suficiente (supondo que aquela pessoa tem suficiente
competência lógica) listar alguns dos muitos diferentes subconjuntos de todos
os eventos. Pois a ocorrência de alguns eventos acarreta a ocorrência de outros
eventos. Há um evento de meu caminhar de A até B das 09.30 até às 09.45 min.,
outro evento de meu caminhar lentamente das 09.30 min às 09.45 min, e um
terceiro evento de meu caminhar lentamente de A até B das 9.30 às 9.45. Mas o
terceiro evento é “nada mais que” os primeiros dois eventos. Para generalizar –
não há nada mais sobre a história do mundo (ou o mundo numa região) do que um
subconjunto de eventos cujas descrições canônicas acarretam as de todos os eventos;
e nada mais nada menos que algum subconjunto mínimo fará isso. Mas então, quais
são os critérios de identidade para as propriedades e as substâncias?
2.
Propriedades
Comecemos com as propriedades. Para satisfazer meu
metacritério é necessário e suficiente que cada propriedade nomeada por meio de
designadores informativos que não são logicamente equivalentes conte como uma
propriedade diferente; não obstante, visto que algumas acarretam outras, não
precisaremos mencioná-las todas a fim de oferecer um relato completo do mundo.
É importante distinguir uma descrição de uma propriedade P em termos de alguma
propriedade que ele possui, de um designador rígido (informativo ou
não-informativo) de P. “Verde” é um designador informativo da propriedade de
ser verde; ele se aplica a ela em todos os mundos possíveis, e uma pessoa que
sabe o que “verde” significa sabe a que um objeto deve ser semelhante para ser
verde. “A cor favorita de Amanda” ou “a cor da grama” pode funcionar como
descrições da propriedade verde em termos de suas propriedades, possivelmente
(em nosso mundo) somente identificando descrições. Essas palavras podem ser
usadas para descrever a propriedade de ser verde ao designar de maneira
informativa uma propriedade diferente – a propriedade de ser a cor favorita de
Amanda ou a propriedade de ser da mesma cor da grama – cujas propriedades a
propriedade de ser verde possui. “Verde é a cor favorita de Amanda” é então uma
sentença com sujeito-predicado onde “A cor favorita de Amanda” designa de
maneira informativa a propriedade de ser a cor favorita de Amanda e desse modo
(em nosso mundo) descreve a propriedade verde. Ela diz que a propriedade
“verde” tem, ela mesma, a propriedade de ser a cor favorita de Amanda. Se ela
afirmasse (de maneira incomum) existir um enunciado de identidade entre as duas
propriedades designadas de maneira informativa, ela seria falsa. Mas qualquer
nome de propriedade pode ser convertido num designador rígido não informativo
de outra propriedade que tem a primeira propriedade. “A cor favorita de Amanda”
pode ser usada para designar de maneira rígida aquela cor que no mundo real é a
cor favorita de Amanda. Neste caso “Verde é a cor favorita de Amanda” será um
enunciado (verdadeiro) de identidade. O expediente da rigidificação nos permite
converter qualquer descrição exclusivamente identificadora de alguma coisa,
incluindo uma propriedade, em um designador rígido daquela coisa. Mas não a
converte num designador informativo daquela coisa. Pois – para dar outro
exemplo – alguém que sabe o que o predicado rigidificado “a cor da grama”
significa não precisa ter nenhuma competência para identificar qualquer
propriedade de cor (diferente que aquela da grama) como sendo aquela
propriedade de cor – pois ele pode nunca ter visto grama.
Para retornar ao tema principal – segue-se das
propriedades serem idênticas se e somente se elas têm designadores informativos
logicamente equivalentes, que propriedades mentais como “ter dor” e “ver
vermelho” não são as mesmas propriedades que algumas propriedades cerebrais. E,
de eventos serem os mesmos eventos se e somente se suas descrições canônicas
envolvem as mesmas propriedades, substâncias e tempos ou se se acarretam
mutuamente, que eventos mentais como eu estar com dor não são idênticos a
eventos cerebrais tais como a irritação de meus nervos-C. E em minha opinião o
mesmo vale para os eventos intencionais tais como eu ter tais e tais crenças,
desejos e objetivos. De modo mais geral, uma vez que os eventos mentais são
eventos aos quais a substância envolvida tem acesso privilegiado, e os eventos
físicos são eventos aos quais a substância não tem acesso privilegiado, nenhum
evento físico pode ser idêntico a qualquer evento mental nem pode acarretá-lo.
Alguns eventos mentais acarretam a ocorrência de eventos físicos (e.g. “Minha
intenção de movimentar meu braço” acarreta “o movimento de meu braço”). Mas
alguns não acarretam – “meu pensamento sobre filosofia” é um evento mental
puro. E o evento mental puro não pode ser inteiramente omitido de uma descrição
completa do mundo. O dualismo de propriedades é um aspecto do mundo que
inevitavelmente chama nossa atenção se tentamos fornecer uma descrição completa
deste mundo.
3
Substâncias: considerações gerais
Volto-me agora para as substâncias. Para uma
substância num tempo t2 ser a mesma substância que uma substância num tempo
anterior t1, dois tipos de critérios devem ser satisfeitos. Primeiro, as duas
substâncias devem ter as propriedades essenciais das mesmas espécies de
substâncias a que elas pertencem. Exatamente como existem diferentes maneiras
de dividir a história do mundo em eventos, do mesmo modo existem diferentes
maneiras de dividir o mundo em espécies de substâncias, algumas delas nos
permitiriam fornecer uma descrição verdadeira e completa do mundo. Suponha que
eu tenho um carro que eu converto num barco. Posso pensar carros como
essencialmente carros. Neste caso uma substância (um carro) deixou de existir e
tornou-se outra substância (um barco). Ou posso pensar um carro como
essencialmente um veículo a motor, e neste caso ele continuou a existir embora
com diferentes (não essenciais) propriedades. Todas as três substâncias existem
– o carro que é essencialmente um carro, o barco que é essencialmente um barco,
e o veículo a motor que é essencialmente um veículo a motor. Não obstante,
posso contar a história completa do mundo seja ao contar a história do veículo
a motor, seja ao contar a história do carro ou a do barco.
A segunda condição para uma substância num tempo
ser idêntica a uma substância em outro tempo é que as duas substâncias sejam
compostas basicamente das mesmas partes, na medida em que esta deve suportar
uma variação em relação ao gênero de substância. Pelo menos cinco tipos de
coisas têm sido chamadas “substâncias”: coisas simples, organismos, artefatos,
agregados mereológicos e objetos gerrymandered (tais como a gaveta do lado
direito de minha escrivaninha juntamente com o planeta Vênus). Não obstante a
opinião de alguns de que somente algumas dessas são realmente substâncias, meu
metacritério não fornece nenhuma justificação para semelhante restrição
arbitrária. Para cada um desses gêneros de substâncias existe seu próprio tipo
de critério de identidade, variando com o grau de substituição ou rearranjo de
partes que é compatível com a existência contínua da substância (e.g. para um
agregado mereológico nenhuma substituição é possível; para artefatos como um
carro, um barco, ou um veículo a motor é possível uma grande quantidade de
substituição). Uma história completa do mundo precisará mencionar somente
certos gêneros de substâncias – e.g. se ela nos conta a história de todas as
partículas fundamentais que poderiam ser suficientes (se esquecermos por alguns
parágrafos os problemas óbvios que surgem das substâncias terem propriedades
mentais). Não há mais nada em relação a qualquer substância que as suas partes,
e a história da substância é a história de suas partes. Poderia às vezes ser
mais simples do ponto de vista explicativo se alguém considerasse substâncias
maiores, e.g. organismos, em vez de suas partes como as substâncias nos termos
das quais delinear a história do mundo; mas as propriedades causais de
substâncias maiores, incluindo os organismos, são apenas as propriedades
causais de suas partes, ainda que as últimas tenham propriedades causais tais
que quando combinadas com outras partes elas se comportam de maneiras
diferentes das maneiras como se comportam separadamente. De maneira
alternativa, em vez de contar somente a história das partículas fundamentais,
devemos incluir em nossa história do mundo os organismos e os artefatos,
dizendo quando eles ganham ou perdem partes, ou suas partes internas foram
rearranjadas. Poderíamos então ter de descrever a história das partículas
fundamentais somente na medida em que elas não formam partes imutáveis dos
organismos ou artefatos.
Ser a mesma parte pode ela mesma ser uma questão de
ter todas as mesmas subpartes, e assim por diante; ou alguma substituição das
subpartes pode ser admitida, mas no fim – se quisermos trabalhar com um
critério de identidade claro que permita uma descrição completa do mundo –
devemos alcançar um nível em que (por definição) nenhuma substituição seja
possível se a subparte for considerada a mesma subparte, um nível que eu
chamarei de partes elementares. Ser a mesma parte elementar envolverá, como no
tocante a qualquer substância, ter as propriedades essenciais características
da espécie – ser este átomo de hidrogênio envolverá ter certa massa atômica,
número, etc., Envolverá também alguma coisa diferente, pois deve ser a mesma
marca daquela espécie – um princípio de individuação.
O que aquele princípio é depende crucialmente de
que espécies de coisas as substâncias são. Uma concepção é que as substâncias
são simples feixes de propriedades co-instanciadas. A concepção alternativa é
que algumas substâncias tem ecceidade - Para uma abordagem mais detalhada da
ecceidade e de qual seria a evidência de que os objetos materiais têm ou não
têm ecceidade, ver meu artigo “Thisness”, Australasian Journal of Philosophy,
73 (1995), 389-400. Este artigo tem sido objeto de algumas críticas detalhadas
por parte de John O’Leary-Hawthorne e J. A. Cover in “Framing the Thisness
Issue”, Australasian Journal of Philosophy 75 (1997), 102-8. Uma crítica
completamente injustificada que ele faz é que (p. 104) meu “princípio diz
respeito à duplicação solo numero intra-mundo” e que “é surpreendente que
Swinburne não apresente explicitamente versões intra-mundo de seu princípio”.
Entretanto, eu deixo explicitamente claro (p. 390) que todos os princípios que
eu discuti (incluindo, portanto, aquele princípio nos termos dos quais eu
defini ecceidade), “dizem respeito não meramente a identidade de indivíduos num
dado mundo, mas em todos os mundos possíveis” - Uma substância tem ecceidade se
pudesse existir em vez dela (ou tanto quanto ela) uma substância diferente que
tivesse todas as mesmas propriedades que ela, incluindo as propriedades
relacionadas ao passado e ao futuro tais como continuidade espaço-temporal de
uma substância tendo tais e tais propriedades monádicas.
Se nenhuma substância tem ecceidade, então a
história do mundo consistirá de feixes de propriedades co-instanciadas tendo
propriedades adicionais, incluindo relações espaço-temporais com os feixes
anteriores, passando a existir e deixando de existir, e causando a subseqüente
existência e as propriedades dos outros feixes. Existem muitas maneiras
diferentes (igualmente bem justificadas por meio de nosso metacritério inicial
para um sistema de categorias metafísicas) de dividir o mundo em substâncias no
tempo, conforme o tamanho do feixe e quais membros do feixe são considerados
essenciais para a substância que eles formam. E, conforme quais membros do
feixe são considerados essenciais, também haveria diferentes maneiras de
determinar a continuidade da substância no tempo. As partes elementares também
serão individuadas por propriedades. Obviamente tal propriedade para individuar
partes que ocupam espaço é a continuidade espaço-temporal de uma substância que
tem as mesmas propriedades essenciais das espécies, conjugada talvez com a
continuidade causal (ou seja, a primeira substância causando a existência das
substâncias posteriores); para as substâncias não-espaciais, a continuidade
temporal mais a continuidade causal parecem ser as condições óbvias. E
necessitamos de uma única condição para assegurar que no máximo uma substância
posterior a uma dada substância que satisfaz ambas estas condições é a
substância original. Mas existem novamente maneiras alternativas em que essas
condições poderiam ser detalhadas, uma das quais nos permitiria contar toda a
história do mundo. Se considerarmos a continuidade espaço-temporal necessária
para a identidade das substâncias no tempo, então teremos que dizer que se um
elétron desaparece de uma órbita e causa o aparecimento de um elétron em outra
órbita sem existir continuidade espaço-temporal entre eles, eles são elétrons
diferentes. Contudo, se insistirmos apenas na continuidade causal, então eles
serão o mesmo elétron. Mas nós podemos contar toda a história do mundo de ambas
as maneiras, e ambas as histórias serão verdadeiras; elétrons de ambos os tipos
existirão.
Se, entretanto, algumas substâncias têm ecceidade,
uma história completa do mundo terá de descrever as continuidades não meramente
dos feixes de propriedades co-instanciadas, mas da ecceidade que subjaz a
certos feixes (ou seja, do que é que faz a diferença entre dois feixes das
mesmas propriedades com, qualitativamente, a mesma história). Desse modo, deve
ser uma condição necessária das partes elementares das substâncias serem
idênticas que elas tenham a mesma eccedidade - Se as partes simples têm a mesma
ecceidade, então a substância composta delas terá uma ecceidade constituída por
estas e vice-versa. Eu, por conseguinte, rejeito uma visão que Galois chama
“haecceitism forte”, a visão de que dois objetos (O num mundo m, e O* num mundo
m*) poderiam não obstante ser diferentes, mesmo se eles tivessem absolutamente
as mesmas propriedades e fossem compostos de constituintes idênticos. Ver A.
Galois, Occasions of Identity, Clarendon Press, 1998, p. 250-51.) - . Para
aquelas substâncias físicas que são objetos materiais, a ecceidade é ser feita
da mesma matéria. Nós temos então a teoria hilemórfica de que a identidade de
um objeto material requer a identidade das propriedades essenciais das espécies
e a identidade da matéria subjacente. Neste caso, se (e somente se) o elétron
na nova órbita é composto da mesma matéria que o velho elétron, ele é o velho
elétron. A continuidade espaço-temporal agora não é mais uma condição
independente para uma substância física continuar a existir, mas provavelmente
evidência (falível) de que a mesma matéria continuou a existir; e, assim, dado
que as outras propriedades essenciais das espécies arbitrariamente escolhidas
são preservadas, que os mesmos objetos materiais existem. A continuidade
espaço-temporal é evidência da identidade da matéria na medida em que é a
melhor (i.e. a mais provável) teoria física de como o comportamento da matéria
tem a conseqüência de que ela se move espacialmente em trajetórias contínuas.
Não sabemos se os objetos materiais inanimados do
nosso mundo têm ecceidade, e a esse respeito não sabemos o que constituiria uma
descrição completa do nosso mundo. Se eles têm ecceidade, então nem todo relato
do mundo que descreve os modelos de distribuição das propriedades no mundo será
um relato correto. Precisamos de um relato que individualize as partes
elementares dos objetos materiais inanimados (discriminadas enquanto tais de
uma maneira clara) sendo a mesma substância só se eles têm a mesma matéria.
Então agregados mereológicos terão de ter a mesma matéria durante toda sua
existência, enquanto que os organismos podem gradualmente substituir a matéria.
Fornecer a história completa do mundo, aleguei,
envolve listar todos os eventos de um subconjunto que acarreta todos os eventos
que têm acontecido sob suas descrições canônicas. Vimos no caso das
propriedades que isso envolve discriminar as propriedades envolvidas por meio
de designadores informativos. E seguramente nós necessitamos para designar de
maneira informativa também as substâncias – simplesmente fornecer uma descrição
delas, ainda que uma descrição rigidificada, que nos dissesse o que seria
verde, quadrado ou sentir dor. Designar de maneira informativa uma propriedade
envolve conhecer certo conjunto de condições necessárias e suficientes para
alguma coisa ser aquela propriedade. Considerações similares devem ser
aplicadas às substâncias. Mas aqui temos de notar que embora conheçamos
designadores informativos para muitas propriedades, não conhecemos designadores
informativos para muitas substâncias. Muitas vezes não conhecemos as condições
necessárias e suficientes para uma substância ser aquela substância; pois
muitas vezes não sabemos o que constituiria uma futura substância ou uma
substância num outro mundo aquela substância. Uma das principais razões para
nossa incapacidade de designar de maneira informativa as substâncias é que não
sabemos a respeito de algumas espécies de substâncias, e em particular dos objetos
materiais inanimados, se eles têm ou não ecceidade (e, assim, por exemplo, se
devem ser individuados em parte por sua matéria subjacente) ou se devem ser
individuados somente por meio das propriedades, incluindo as propriedades
(espaço temporal e/ou outras) de continuidade.
4.
Substâncias Mentais
Suponha agora que nenhuma substância tem ecceidade,
e, portanto, que a opinião de que todas as substâncias são feixes seja correta.
Substâncias mentais são aquelas substâncias que têm essencialmente propriedades
mentais. Por conseguinte, se há substâncias mentais depende de como um feixe
reúne feixes de propriedades em substâncias. Propriedades mentais com partes
físicas (tal como a propriedade de intencionalmente levantar um dos braços) são
naturalmente consideradas como pertencendo à substância a qual a parte física
pertence. Mas alguém pode colocar propriedades mentais puras (tal como a
propriedade de tentar levantar um dos braços) ou no mesmo feixe que a
propriedade física a qual ela é mais estreitamente relacionada causalmente –
aquela que é a causa dela ser instanciada ou cuja instanciação é causada por
ela, - (Como proposto, por exemplo, por Jerome Shaffer, “Could Mental Processes
be Brain Processes”, Journal of Philosophy 58 (1961) - ou – seguindo Hume - “A
verdadeira idéia de uma mente humana é a que a considera um sistema de
diferentes percepções ou diferentes existências, encadeadas pela relação de
causa e efeito, e que mutuamente produzem, destroem, influenciam e modificam-se
umas às outras”. David Hume, Tratado da Natureza Humana, 1.4.6. - alguém pode
colocar as propriedades mentais puras num feixe de outras propriedades mentais
puras com cuja instanciação ele é relacionado causalmente (e talvez também
relacionado pelas relações de similaridade e aparente memória). No modelo
Humeano haveria, claramente, substâncias mentais, pois alguns feixes de
propriedades seriam individuados por suas propriedades mentais. Parece,
entretanto, que no modelo não-Humeano alguém poderia individuar substâncias
somente por meio de suas propriedades físicas e considerar as propriedades
mentais como simplesmente membros contingentes dos feixes, e nesse caso as
únicas substâncias seriam as substâncias físicas. Alternativamente alguém
poderia individuar substâncias pelo menos parcialmente em termos de
propriedades mentais, e neste caso haveria substâncias mentais. Ambas as
maneiras de descrever o mundo forneceriam uma descrição completa. Então
torna-se uma questão arbitrária dizer que há substâncias mentais.
Contrariamente a este modelo, entretanto, não é
possível ter uma descrição completa do mundo em que todas as substâncias sejam
individuadas somente por meio das propriedades físicas. Pois é um dado evidente
da experiência que eventos mentais conscientes de diferentes tipos (sensações
visuais, sensações auditivas, etc.) são co-experienciados, isto é, pertencem à
mesma substância. Qualquer descrição do mundo que tenha como conseqüência que
eventos co-experienciados não pertencem à mesma substância será uma descrição
falsa. Portanto, deve haver substâncias cuja identidade é constituída em parte
por ser a substância à qual alguma série de eventos mentais co-experienciados
pertence. Se essas substâncias são também substâncias às quais os eventos
físicos pertencem e que são causalmente mais diretamente conectados a esses
eventos mentais – permitam-me chamá-los de correlatos físicos dos eventos
mentais, então seus limites espaciais num tempo e num outro tempo nunca podem
ser mais próximos que aqueles dos correlatos físicos dos eventos
co-experienciados. A identidade da substância é assim constituída por uma
propriedade mental, de modo que seus limites não são mais próximos que os
limites dos correlatos físicos daquilo que eu co-experimento. Nós não podermos
dividir o mundo é uma maneira arbitrária de individuar substâncias somente por
meio de propriedades físicas, e supor que as propriedades mentais são meramente
propriedades contingentes dessas substâncias. Pois ainda que (embora pareça não
ser o caso empiricamente) a base do cérebro, por exemplo, as minhas sensações
visuais e as minhas sensações auditivas fossem idênticas, isso ainda não
acarretaria o dado da experiência de que elas seriam ambas tidas pela mesma
pessoa. Nós só podemos incluir esse dado numa descrição completa do mundo se
supusermos que a identidade das substâncias que têm propriedades mentais
conscientes é determinada pelo fato de que as propriedades mentais que elas têm
ao mesmo tempo são co-experienciadas.
É também um evidente dado da experiência que certos
eventos mentais são tidos sucessivamente pela mesma pessoa. As experiências
requerem tempo – ainda que apenas um segundo ou dois; e cada experiência que eu
tenho eu experiencio como consistindo de duas partes menores. Sou o sujeito
comum da experiência de ouvir a primeira metade de sua sentença e a experiência
de ouvir a segunda metade de sua sentença. E, contudo, o simples fato de que
essas experiências são causadas por eventos na mesma parte da substância física
que é meu cérebro não acarreta isso. Segue-se, por ambas essas razões, que não
podemos descrever o mundo completamente exceto em termos de substâncias mentais
que – se elas têm propriedades físicas – são as substâncias que são tanto em um
tempo como num outro tempo, cujos limites não são mais estreitos que aqueles
dos correlatos físicos daquilo que um sujeito co-experiencia.
Será evidente que não fará diferença para o caso
que existam substâncias mentais se a teoria dos feixes de todas as substâncias
físicas for falsa, e os objetos materiais inanimados, incluindo as
moléculas-cerebrais, tiverem ecceidade (e assim sendo a mesma substância não é
somente uma função das propriedades, mas da matéria em que as propriedades são
instanciadas). Pois ainda não se seguiria disso que as propriedades mentais
seriam co-experienciadas. Podemos descrever as ocorrências de co-experiências
só se admitirmos a existência de substâncias mentais.
Esta conclusão é reforçada quando consideramos
alguns dados neurofisiológicos e experimentos mentais bastante conhecidos. A
questão crucial quando os hemisférios do cérebro de um paciente são separados é
se (na hipótese de que as experiências sejam produzidas por ambos os
hemisférios cerebrais) as experiências produzidas pelo hemisfério esquerdo de
seu cérebro são co-experienciadas com as experiências produzidas pelo
hemisfério direito de seu cérebro. Não se trata simplesmente de que algumas
maneiras de separar o cérebro ou de definir quando ele começa ou deixa de
existir forneceriam explicações mais simples do que outras de como o cérebro ou
o corpo se comporta, mas que algumas maneiras acarretariam a não ocorrência de
um dado da experiência, cuja ocorrência seria evidente para seu sujeito ou
sujeitos – que um sujeito teve ambas as séries de experiências, ou que ele teve
somente uma série. Se existe uma pessoa ou duas não é algo acarretado por quais
experiências são conectadas a quais hemisférios cerebrais, ou a alguma coisa
física diferente. Para descrever o que está acontecendo precisamos individuar
as pessoas em parte pelas experiências que elas têm, e não pela extensão da
unidade de um cérebro. Somente para descrever a experiência, não para
explicá-la, necessitamos de substâncias mentais individuadas pelo menos em
parte segundo esta maneira.
Esta conclusão é, além disso, reforçada quando consideramos
o experimento mental do transplante de metade do cérebro. O cérebro de S é
tirado de sua cabeça, dividido em duas metades, essas metades são colocadas em
duas cabeças diferentes daquelas cujos cérebros foram removidos, alguns bits
adicionais são acrescentados de um clone de S, os bits são conectados ao
sistema nervoso e nós então temos duas pessoas funcionando com vidas mentais.
Mas se nós conhecemos somente a história de todos os bits físicos, descritos em
termos de suas propriedades (e, se preciso for, de sua matéria subjacente) e
quais propriedades mentais são instanciadas em todas as pessoas envolvidas,
parece haver algo crucial que ignoramos – qual (se uma ou outra) da subsequente
pessoa é S. Se S sobreviveu a uma semelhante operação traumática parece ser uma
questão evidentemente factual, e também uma questão indeterminada pelas
propriedades físicas e mentais associadas às substâncias físicas. Somente se S
é uma substância mental (a quem a experiências co-experienciadas ocorrem), pode
haver uma verdade desconhecida sobre se S sobreviveu ou não a esta operação – o
que seguramente às vezes poderá ocorrer. E mesmo que, como alguns filósofos
supuseram - Apresentei argumentos bastante sucintos a favor da necessária
indivisibilidade da alma ao argumentar contra a possibilidade de fissão de
pessoas em The Evolution of the Soul (revised edition, Clarendon Press, 1997)
p. 149-50, e contra a possibilidade de fusão de pessoas em minha contribuição a
(ed.) Sydney Shoemaker and Richard Swinburne Personal Identity (Basil
Blackwell, 1984) p.44-5. - , em tais casos cada uma das pessoas recentes seja
parcialmente eu, esta não pode ser uma verdade necessária porque a história de
todos os bits físicos e de todas as propriedades mentais associadas a elas é
compatível com o fato de nenhuma pessoa ser plenamente eu, ou com só uma delas
ser plenamente eu. Nós ainda ignoraríamos quais das sub-sequentes pessoas (se
alguma) seria plenamente eu. Conclui-se que as substâncias mentais não são
idênticas às substâncias físicas e que sua existência não é acarretada por
elas, visto que pode haver mundos em que as substâncias físicas (cérebros e a
extensão de sua continuidade) são as mesmas mas existem diferentes substâncias
mentais (duas num mundo, somente uma em outro).
5. Substâncias
mentais puras
Minha alegação final é que os seres humanos, você e
eu, são substâncias mentais puras. Muitos experimentos mentais no espírito de
Descartes parecem descrever situações concebíveis e constituir, desse modo, uma
forte evidência da possibilidade lógica de eu existir sem um corpo, ou
continuar a existir quando meu corpo é destruído. Permitam-me citar o
experimento mental original de Descartes:
“Compreendi que enquanto eu pudesse conceber que eu
não tinha nenhum corpo... Eu não poderia conceber que eu não exista. Por outro
lado, se eu tivesse apenas cessado de pensar, ... eu não teria nenhuma razão
para pensar que eu tivesse existido. A partir disso reconheci que eu era uma
substância cuja natureza e essência toda é pensar e que para sua existência não
é necessário nenhum lugar, nem depende de qualquer coisa material”.
Podemos compreender estas e muitas hipóteses
similares (vida desencarnada depois da morte, etc.); elas não parecem conter
qualquer contradição – e isso é uma forte evidência de que o que parecemos conceber
é logicamente possível. Mas, diz o adversário, e esta objeção é relevante
também relativamente aos experimentos mentais anteriores que mencionei, a
questão é se tais hipóteses são “metafisicamente possíveis”. Uma possibilidade
lógica é simplesmente uma possibilidade cuja negação não envolve uma
contradição. Mas “Hesperus não é Phosphorus” ou “água não é H2O (‘Hesperus’,
‘Phosphorus’ ‘água’ sendo usados nos sentidos antigos) não envolve nenhuma
contradição, mas o que se alega é absolutamente impossível, “metafisicamente
impossível”. O metafisicamente impossível é mais abrangente que o logicamente
impossível. Mas essa divergência entre o logicamente impossível e o
metafisicamente impossível só surge quando substâncias ou propriedades são
discriminadas por meio de designadores não informativos. Se não sabemos
perfeitamente o que Hesperus é, então não sabemos perfeitamente o que ele pode
ser. Entretanto, “eu” (ou ‘Richard Swinburne’ como empregado por mim) é um
designador informativo.
Pois eu conheço as condições necessárias e
suficientes a fim de uma substância ser essa substância. Posso reconhecer (com
as faculdades funcionando perfeitamente, estando favoravelmente posicionado e
não sujeito à ilusão) quando elas se aplicam e quando não se aplicam e fazer
simples inferências a partir de suas aplicações. Pois eu posso sempre estar
favoravelmente muito bem posicionado e totalmente livre de ilusão quando eu me
percebo
como o sujeito da experiência e da ação –
infalivelmente. Nisso eu sou, na frase de Shoemaker, “imune ao erro devido a
má-identificação”. Não posso reconhecer que uma experiência consciente presente
está tendo lugar e, não obstante, confundi-la como sendo sua quando ela na
verdade é minha, ou vice-versa. Posso confundir-me se eu me distingo por meio
de um corpo – por exemplo, acreditando falsamente que a pessoa vista no espelho
sou eu – mas esse será um caso de ilusão. Portanto, eu conheço a essência
daquele acerca de quem estou falando quando falo sobre mim.
Evidentemente eu posso futuramente não me lembrar
direito do que eu fiz no passado, e na realidade não me lembrar direito como
empreguei a palavra “eu” no passado. Mas este tipo de problema surge com toda
afirmação, seja qual for, sobre o passado. “Verde” é um designador informativo
de uma propriedade, mas eu posso futuramente não me lembrar direito que coisas
eram verdes e inclusive o que eu significava por “verde” no passado. A
diferença entre designadores informativos e não informativos é que (quando
minhas faculdades estão funcionando bem, quando estou favoravelmente
posicionado e não sujeito à ilusão) posso reconhecer quais objetos são
corretamente discriminados atualmente por meio de designadores informativos,
mas não geralmente quando eles são discriminados por designadores não informativos
(na ausência de informação adicional). E, dessa maneira, eu sei a que
corresponde uma asserção sobre o passado ou futuro quando ela é feita por meio
de designadores informativos, mas não quando ela é feita por meio de
designadores não informativos. Eu sei o que constituiria uma experiência
passada ou futura ser minha, o que é uma pessoa futura ou passada ser eu. Não é
assim com Hesperus ou a água. Eu não sei (no sentido definido) o que
constituiria uma substância passada ou futura ser água ou Hesperus se me
encontro simplesmente na condição de alguém que usa o termo “água” no século
XVIII, ou o termo “Hesperus” no início do mundo antigo ou mesmo hoje – se eu
não sei se um planeta tem certa ecceidade para ser Hesperus.
Concluo que, na ausência de alguma contradição
lógica oculta (e eu quero dizer “lógica”) na descrição de Descartes de seu
experimento mental – para supor o que seria imensamente implausível – o
experimento mostra o que ele pretende mostrar: Descartes é uma substância
mental pura. Ele poderia existir sem qualquer existência física, e dessa
maneira as substâncias mentais puras existem logicamente independentemente das
substâncias físicas. Cada um de nós pode fazer o mesmo experimento a respeito
de nós mesmos e, desse modo, mostrar que nós somos substâncias mentais puras. E
cada um de nós pode considerar o experimento mental anterior como feito para si
mesmo; e então esta objeção sobre o logicamente possível nem sempre ser
metafisicamente possível não terá qualquer força.
Existem, entretanto, duas espécies de substâncias
mentais puras – aquelas que não têm um corpo como uma parte contingente, e
aquelas que têm. Espíritos não têm corpos, por exemplo, ao passo que os seres
humanos que vivem na Terra têm corpos. Mas uma vez que o corpo que é atualmente
meu poderia continuar a existir como um corpo vivo sem ter qualquer conexão
causal com qualquer substância mental, ou poderia tornar-se em vez disso o
corpo de uma substância mental diferente; e visto que eu poderia, sob tais
circunstâncias, continuar a existir e ter uma vida mental sem um corpo, eu
agora consisto de duas partes separadas, – meu corpo (a parte contingente de
meu eu), e o resto de meu eu que podemos chamar de minha alma (a parte
essencial de meu eu).
Mas o que fixa a identidade das substâncias mentais
puras? Se os objetos materiais têm ou não ecceidade, minha alma tem sua própria
ecceidade, independentemente de qualquer ecceidade possuída por algum cérebro
ao qual ela está conectada. Pois eu poderia ter tido uma vida mental diferente
de uma vida que eu tive, e parece concebível (e, portanto, é provavelmente
logicamente possível) que duas diferentes almas não-corporificadas poderiam
sempre ter tido a mesma vida mental ao mesmo tempo – a mesma sucessão de
propriedades mentais poderiam ser instanciadas em cada uma delas. Portanto, a
substância mental não é a substância que é ela em virtude meramente das
propriedades que ela tem. De maneira que a opinião Humeana da identidade
pessoal como constituída por conexões causais (e outras relacionais) entre
nossas presentes propriedades mentais instanciadas deve ser rejeitada. O mesmo
ponto é apresentado pela aparente conceptibilidade de um mundo M2 em que para
cada substância em M1 existe uma substância que tem as mesmas propriedades que
ele e vice-versa (e qualquer matéria física subjacente às propriedades é a
mesma em ambos os mundos), mas onde uma pessoa S que existe em M1 não existe em
M2. A pessoa que vive em M2 a vida (física e mental) que S vive em M1 não é S.
E certamente este mundo poderia ser diferente somente considerando que a pessoa
que viveu minha vida era não eu. Pois ela não é acarretada pela descrição
completa do mundo em seus aspectos físicos e em relação a quais feixes de
propriedades mentais são instanciadas na mesma substância que eu, percebido
como o verdadeiro sujeito de certas propriedades mentais, tenho as propriedades
mentais ou físicas particulares que eu tenho e estou conectado com o corpo com
o qual estou conectado. Sou essencialmente minha alma, cuja identidade é
irredutível a qualquer outra coisa.