quinta-feira, 30 de abril de 2015

Uma defesa do dualismo de substâncias

Richard Swinburne

Resumo: Argumento neste artigo que embora existam muitas maneiras diferentes de descrever o mundo ou algum segmento dele, qualquer maneira que deixe de acarretar logicamente uma separabilidade do corpo e da alma como os dois componentes de cada ser humano conhecido (o corpo sendo uma parte contingente e a alma a parte essencial do homem) deixará de fornecer uma descrição completa do mundo.

1 Definições
Começo com algumas definições estipulativas. Entendo por uma propriedade um universal monádico ou relacional, e por um evento a instanciação de uma propriedade numa substância ou em substâncias (ou em propriedades ou eventos) em um tempo. Qualquer definição de uma substância tende a tomar como provadas as questões filosóficas, mas eu trabalharei com uma definição que, penso, não toma como provado o problema em questão neste artigo. Uma substância é uma coisa (diferente que um evento) que pode (é logicamente possível) existir independentemente de todas as outras coisas daquela categoria metafísica (i.e. de todas as outras substâncias) exceto de suas partes (A noção de uma substância é exatamente esta – que ela pode existir por si mesma sem o suporte de outra substância”. R. Descartes, Replies to the Fourth Set of Objections, in (trans.) J. Cottingham, R. Stoothof e D. Murdoch, The Philosophical Writings of Descartes, 2: 159). Assim mesas, planetas, átomos e seres humanos são substâncias. Ser quadrado, pesar 10 kg, ou ser mais alto que, são propriedades (as primeiras duas são propriedades monádicas, a última é uma propriedade relacional que relaciona duas substâncias). Eventos incluem minha mesa ser quadrada agora, ou John ser mais alto que James em 30 de março de 2001 às 10.00 a.m.

Existem diferentes maneiras de fazer a distinção entre o mental e o físico, mas proponho fazê-la nos termos do que é de maneira privilegiada acessível e público. Existem na literatura outras maneiras de entender a oposição mental/físico, as mais comuns delas são as oposições intencional/não-intencional e ciência física/ciência não física. Exponho isso somente em termos dos eventos. Na primeira abordagem um evento mental é um evento que envolve uma atitude em relação a alguma coisa sob uma descrição – ele está temendo, pensando, acreditando nisto ou naquilo; quando o sujeito necessariamente não teme, não pensa, não acredita em alguma coisa idêntica a isso ou aquilo; um evento físico é um evento diferente de um evento mental. Na segunda abordagem o físico é o que pode ser explicado por meio de uma física estendida, e o mental é o que não pode ser explicado desta forma.

A primeira abordagem tem a conseqüência infeliz de que qualidades como dores e cores não são eventos mentais; contudo, estas qualidades são as causadoras de problemas paradigmáticos para a identidade entre “mente-cérebro”, e devemos considerá-las como mentais se quisermos lidar de alguma maneira com o problema tradicional mente/corpo. A segunda abordagem é desesperadamente vaga, pois é totalmente ininteligível o que constituiria uma ciência que incorporasse a atual física como ainda sendo uma física. Daí minha preferência pela minha maneira de definir as propriedades “mentais” e “físicas”, os eventos, e – de maneira análoga – as substâncias.

Uma propriedade mental é uma propriedade sobre cuja instanciação a substância em que ela é substanciada tem necessariamente acesso privilegiado em todas as ocasiões de sua instanciação, e uma propriedade física é uma propriedade sobre cuja instanciação nela uma substância não tem necessariamente acesso privilegiado em qualquer ocasião de sua instanciação. Alguém tem acesso privilegiado sobre se uma propriedade P é instanciada nele no sentido de que – dado que ele sabe o que é alguma coisa ter P (ou seja, tem o conceito de P) - Agradeço a David Armstrong por mostrar que minha definição original de “acesso privilegiado” sem a cláusula inicial “dado que” tinha a conseqüência de que, como animais e bebês não poderiam descobrir se “estão tendo uma imagem vermelha” etc. instanciada neles porque eles não têm os conceitos necessários para obter conhecimento por introspecção, não poderiam ter acesso privilegiado a essas propriedades; e disso se seguiria que não poderia haver propriedades mentais segundo meu sentido. A cláusula adicional torna o caráter mental de uma propriedade uma questão de se alguém que tem o conceito daquela propriedade tem uma maneira de ter conhecimento a seu respeito que não é disponível aos outros - quaisquer que sejam os meios que os outros têm de descobrir isso, é logicamente possível que ele possa usar, mas ele tem um meio adicional (experienciando-a) que não é logicamente possível que outros possam usar. Uma propriedade mental pura pode então ser definida como uma propriedade cuja instanciação não acarreta a instanciação de uma propriedade física. Um evento mental é um evento sobre cuja instanciação numa substância, aquela substância tem acesso privilegiado; e um evento físico é um evento sobre cuja instanciação numa substância aquela substância não tem acesso privilegiado. Um evento mental puro é um evento que não acarreta a ocorrência de um evento físico. (A maioria dos eventos mentais, mas nem todos, implicam a instanciação de propriedades mentais.) Uma substância mental é uma substância sobre cuja existência aquela substância necessariamente tem acesso privilegiado, e uma substância física é uma substância sobre cuja existência aquela substância necessariamente não tem acesso privilegiado, isto é, uma substância pública. Uma vez que ter acesso privilegiado a algo é isso mesmo uma propriedade mental, e alguém que tem qualquer outra propriedade mental tem a primeira, as substâncias mentais são exatamente aquelas para as quais algumas propriedades mentais são essenciais. Uma substância mental pura é uma substância cuja existência não acarreta a existência de uma substância física. Ora, a história do mundo é a história de uma coisa e depois outra ocorrência de coisas, num sentido de “ocorrência de coisas” que inclui tanto coisas que permanecem idênticas e coisas que mudam. Sugiro que as coisas que ocorrem são eventos no sentido que dou a este termo. Trata-se desta substância que existe por um período de tempo (que pode ser analisada como tendo suas propriedades essenciais), que chega a ter esta propriedade ou relação com outra substância neste ou naquele tempo, que continua a tê-la e então deixa de tê-la. E eu sugiro que não há outras coisas que ocorrem exceto eventos no sentido que dou a este termo. Para conhecer a história do mundo precisamos de uma descrição canônica desses eventos em termos das propriedades, das substâncias e dos tempos envolvidos neles; e estes últimos devem ser discriminados não por meio de quaisquer descrições definidas deles mas por meio de palavras que digam o que eles são – designadores rígidos, mas não simplesmente quaisquer designadores rígidos. Pois alguns designadores rígidos não nos dizem muito acerca do que estamos falando – [o designador] ‘água’ como empregado no século XVIII ou ‘Hesperus’ (a estrela da tarde, que nós agora sabemos ser o planeta Vênus) na própria Grécia antiga, por exemplo. (Dado que alguma coisa é ‘água’, se ela tem a mesma essência (química) que o líquido em nossos rios e mares, então se não sabemos o que essa essência é, como as pessoas não o sabiam no século XVIII, não sabemos muito acerca do que estamos falando. E o mesmo vale para Hesperus se não sabemos do que aquele planeta é feito e, deste modo, se ele é o mesmo planeta que ‘Phosophorus”, a ‘estrela da manhã’.) Precisamos daquilo que eu chamarei de ‘designadores informativos’. Para um designador rígido de uma coisa ser um designador informativo é preciso que alguém que saiba o que a palavra significa (ou seja, que tenha o conhecimento lingüístico do como usá-la) conheça um certo conjunto de condições necessárias e suficientes (em qualquer mundo possível) para uma coisa ser aquela coisa (quer ele possa ou não determinar tais condições em palavras, ou possa de fato alguma vez descobrir que tais condições são satisfeitas). Conhecer essas condições para a aplicação de um designador é ser capaz (quando posicionado de maneira favorável, com as faculdades funcionando perfeitamente e não sujeito à ilusão) de reconhecer quando aplicá-lo e quando não aplicá-lo e ser capaz de fazer simples inferências sobre sua aplicação e a partir de sua aplicação Mais precisamente, se você tem conhecimento lingüístico das regras para usar um designador informativo de um objeto (substância, propriedade, ou o que quer que seja), então você pode aplicá-lo corretamente a qualquer objeto se e somente se (1) você está favoravelmente posicionado, (2) suas faculdades estão funcionando perfeitamente, e (3) você acredita que (1) e (2). Assim, ‘verde’ ser um designador informativo significa que alguém que sabe o que ‘verde’ significa pode aplicá-lo a um objeto de maneira correta quando (1) a luz é luz do dia e ele não está muito longe do objeto, (2) seus olhos estão funcionando perfeitamente, e ele acredita que (1) e (2). Alguém está sujeito à ilusão se ou {(1) e (2)} e não-(3) ou {ou não-(1) ou não-(2)} e (3). Por oposição, (as palavras designadoras tendo seus significados pré-modernos) por mais favoravelmente posicionado que você se encontre e por mais bem que suas faculdades estejam funcionando, você pode não ser capaz de identificar corretamente algum líquido em nossos rios e mares como “água”, ou algum planeta no céu ao entardecer como ‘Hesperus’. Assim “vermelho” é um designador informativo de uma propriedade, da qual “a verdadeira cor de meu primeiro livro” é um simples designador rígido não-informativo. Posso saber o que “vermelho” significa no sentido de ser capaz de identificar coisas como vermelhas, e fazer simples inferências usando a palavra sem saber que coisas em nosso mundo são vermelhas. A competência para usar a palavra “vermelho” pode existir sem o conhecimento de que coisas são realmente vermelhas. Mas saber como usar a expressão “tem a verdadeira cor de meu primeiro livro” não me habilita a reconhecer coisas diferentes de meu primeiro livro como tendo a cor de meu primeiro livro. Quando posso designar uma propriedade (ou o que quer que seja) por meio de um designador informativo, então eu possuo o conceito daquela propriedade; eu sei perfeitamente o que estou dizendo acerca de um objeto quando digo que ele tem aquela propriedade. Mesmo que, quando sujeito à ilusão, eu confunda um objeto como vermelho quando ele não é vermelho, eu sei o que estou dizendo quando digo que ele é vermelho. Estou dizendo que ele tem a cor que contemplaria desta maneira se as circunstâncias fossem normais. Portanto, se nós designamos uma propriedade (ou o que quer que seja) por meio de um designador informativo nós conhecemos a essência do que está envolvido.

Há muitos critérios diferentes para identificar evento, propriedade ou substância, defendidos na literatura filosófica, e precisamos de um metacritério para escolher entres eles. Nosso presente interesse sendo o de oferecer uma descrição completa do mundo, sugiro como um metacritério que nós individualizemos propriedades, substâncias e tempos de tal maneira que se alguém conhece quais propriedades (designadas de maneira informativa) foram instanciadas em quais substâncias (designadas de maneira informativa), eles sabem (ou podem deduzir), tudo o que aconteceu. Uma descrição canônica de um evento dirá quais propriedades, substâncias e tempos ela envolve, discriminando-os por meio de designadores informativos – e, conjuntamente, as propriedades, tempos, e substâncias envolvidas formarão um designador informativo daquele evento. Dois eventos são idênticos se suas descrições canônicas são idênticas ou se acarretam mutuamente. Então será o caso que alguém que sabe todos os eventos que aconteceram sob suas descrições canônicas sabe tudo o que aconteceu (e alguém que sabe todos os eventos que aconteceram sob suas descrições canônicas em alguma região espaço-temporal sabe tudo o que aconteceu naquela região). Para transmitir a uma pessoa o conhecimento de tudo o que aconteceu será suficiente (supondo que aquela pessoa tem suficiente competência lógica) listar alguns dos muitos diferentes subconjuntos de todos os eventos. Pois a ocorrência de alguns eventos acarreta a ocorrência de outros eventos. Há um evento de meu caminhar de A até B das 09.30 até às 09.45 min., outro evento de meu caminhar lentamente das 09.30 min às 09.45 min, e um terceiro evento de meu caminhar lentamente de A até B das 9.30 às 9.45. Mas o terceiro evento é “nada mais que” os primeiros dois eventos. Para generalizar – não há nada mais sobre a história do mundo (ou o mundo numa região) do que um subconjunto de eventos cujas descrições canônicas acarretam as de todos os eventos; e nada mais nada menos que algum subconjunto mínimo fará isso. Mas então, quais são os critérios de identidade para as propriedades e as substâncias?

2. Propriedades
Comecemos com as propriedades. Para satisfazer meu metacritério é necessário e suficiente que cada propriedade nomeada por meio de designadores informativos que não são logicamente equivalentes conte como uma propriedade diferente; não obstante, visto que algumas acarretam outras, não precisaremos mencioná-las todas a fim de oferecer um relato completo do mundo. É importante distinguir uma descrição de uma propriedade P em termos de alguma propriedade que ele possui, de um designador rígido (informativo ou não-informativo) de P. “Verde” é um designador informativo da propriedade de ser verde; ele se aplica a ela em todos os mundos possíveis, e uma pessoa que sabe o que “verde” significa sabe a que um objeto deve ser semelhante para ser verde. “A cor favorita de Amanda” ou “a cor da grama” pode funcionar como descrições da propriedade verde em termos de suas propriedades, possivelmente (em nosso mundo) somente identificando descrições. Essas palavras podem ser usadas para descrever a propriedade de ser verde ao designar de maneira informativa uma propriedade diferente – a propriedade de ser a cor favorita de Amanda ou a propriedade de ser da mesma cor da grama – cujas propriedades a propriedade de ser verde possui. “Verde é a cor favorita de Amanda” é então uma sentença com sujeito-predicado onde “A cor favorita de Amanda” designa de maneira informativa a propriedade de ser a cor favorita de Amanda e desse modo (em nosso mundo) descreve a propriedade verde. Ela diz que a propriedade “verde” tem, ela mesma, a propriedade de ser a cor favorita de Amanda. Se ela afirmasse (de maneira incomum) existir um enunciado de identidade entre as duas propriedades designadas de maneira informativa, ela seria falsa. Mas qualquer nome de propriedade pode ser convertido num designador rígido não informativo de outra propriedade que tem a primeira propriedade. “A cor favorita de Amanda” pode ser usada para designar de maneira rígida aquela cor que no mundo real é a cor favorita de Amanda. Neste caso “Verde é a cor favorita de Amanda” será um enunciado (verdadeiro) de identidade. O expediente da rigidificação nos permite converter qualquer descrição exclusivamente identificadora de alguma coisa, incluindo uma propriedade, em um designador rígido daquela coisa. Mas não a converte num designador informativo daquela coisa. Pois – para dar outro exemplo – alguém que sabe o que o predicado rigidificado “a cor da grama” significa não precisa ter nenhuma competência para identificar qualquer propriedade de cor (diferente que aquela da grama) como sendo aquela propriedade de cor – pois ele pode nunca ter visto grama.

Para retornar ao tema principal – segue-se das propriedades serem idênticas se e somente se elas têm designadores informativos logicamente equivalentes, que propriedades mentais como “ter dor” e “ver vermelho” não são as mesmas propriedades que algumas propriedades cerebrais. E, de eventos serem os mesmos eventos se e somente se suas descrições canônicas envolvem as mesmas propriedades, substâncias e tempos ou se se acarretam mutuamente, que eventos mentais como eu estar com dor não são idênticos a eventos cerebrais tais como a irritação de meus nervos-C. E em minha opinião o mesmo vale para os eventos intencionais tais como eu ter tais e tais crenças, desejos e objetivos. De modo mais geral, uma vez que os eventos mentais são eventos aos quais a substância envolvida tem acesso privilegiado, e os eventos físicos são eventos aos quais a substância não tem acesso privilegiado, nenhum evento físico pode ser idêntico a qualquer evento mental nem pode acarretá-lo. Alguns eventos mentais acarretam a ocorrência de eventos físicos (e.g. “Minha intenção de movimentar meu braço” acarreta “o movimento de meu braço”). Mas alguns não acarretam – “meu pensamento sobre filosofia” é um evento mental puro. E o evento mental puro não pode ser inteiramente omitido de uma descrição completa do mundo. O dualismo de propriedades é um aspecto do mundo que inevitavelmente chama nossa atenção se tentamos fornecer uma descrição completa deste mundo.

3 Substâncias: considerações gerais
Volto-me agora para as substâncias. Para uma substância num tempo t2 ser a mesma substância que uma substância num tempo anterior t1, dois tipos de critérios devem ser satisfeitos. Primeiro, as duas substâncias devem ter as propriedades essenciais das mesmas espécies de substâncias a que elas pertencem. Exatamente como existem diferentes maneiras de dividir a história do mundo em eventos, do mesmo modo existem diferentes maneiras de dividir o mundo em espécies de substâncias, algumas delas nos permitiriam fornecer uma descrição verdadeira e completa do mundo. Suponha que eu tenho um carro que eu converto num barco. Posso pensar carros como essencialmente carros. Neste caso uma substância (um carro) deixou de existir e tornou-se outra substância (um barco). Ou posso pensar um carro como essencialmente um veículo a motor, e neste caso ele continuou a existir embora com diferentes (não essenciais) propriedades. Todas as três substâncias existem – o carro que é essencialmente um carro, o barco que é essencialmente um barco, e o veículo a motor que é essencialmente um veículo a motor. Não obstante, posso contar a história completa do mundo seja ao contar a história do veículo a motor, seja ao contar a história do carro ou a do barco.

A segunda condição para uma substância num tempo ser idêntica a uma substância em outro tempo é que as duas substâncias sejam compostas basicamente das mesmas partes, na medida em que esta deve suportar uma variação em relação ao gênero de substância. Pelo menos cinco tipos de coisas têm sido chamadas “substâncias”: coisas simples, organismos, artefatos, agregados mereológicos e objetos gerrymandered (tais como a gaveta do lado direito de minha escrivaninha juntamente com o planeta Vênus). Não obstante a opinião de alguns de que somente algumas dessas são realmente substâncias, meu metacritério não fornece nenhuma justificação para semelhante restrição arbitrária. Para cada um desses gêneros de substâncias existe seu próprio tipo de critério de identidade, variando com o grau de substituição ou rearranjo de partes que é compatível com a existência contínua da substância (e.g. para um agregado mereológico nenhuma substituição é possível; para artefatos como um carro, um barco, ou um veículo a motor é possível uma grande quantidade de substituição). Uma história completa do mundo precisará mencionar somente certos gêneros de substâncias – e.g. se ela nos conta a história de todas as partículas fundamentais que poderiam ser suficientes (se esquecermos por alguns parágrafos os problemas óbvios que surgem das substâncias terem propriedades mentais). Não há mais nada em relação a qualquer substância que as suas partes, e a história da substância é a história de suas partes. Poderia às vezes ser mais simples do ponto de vista explicativo se alguém considerasse substâncias maiores, e.g. organismos, em vez de suas partes como as substâncias nos termos das quais delinear a história do mundo; mas as propriedades causais de substâncias maiores, incluindo os organismos, são apenas as propriedades causais de suas partes, ainda que as últimas tenham propriedades causais tais que quando combinadas com outras partes elas se comportam de maneiras diferentes das maneiras como se comportam separadamente. De maneira alternativa, em vez de contar somente a história das partículas fundamentais, devemos incluir em nossa história do mundo os organismos e os artefatos, dizendo quando eles ganham ou perdem partes, ou suas partes internas foram rearranjadas. Poderíamos então ter de descrever a história das partículas fundamentais somente na medida em que elas não formam partes imutáveis dos organismos ou artefatos.

Ser a mesma parte pode ela mesma ser uma questão de ter todas as mesmas subpartes, e assim por diante; ou alguma substituição das subpartes pode ser admitida, mas no fim – se quisermos trabalhar com um critério de identidade claro que permita uma descrição completa do mundo – devemos alcançar um nível em que (por definição) nenhuma substituição seja possível se a subparte for considerada a mesma subparte, um nível que eu chamarei de partes elementares. Ser a mesma parte elementar envolverá, como no tocante a qualquer substância, ter as propriedades essenciais características da espécie – ser este átomo de hidrogênio envolverá ter certa massa atômica, número, etc., Envolverá também alguma coisa diferente, pois deve ser a mesma marca daquela espécie – um princípio de individuação.

O que aquele princípio é depende crucialmente de que espécies de coisas as substâncias são. Uma concepção é que as substâncias são simples feixes de propriedades co-instanciadas. A concepção alternativa é que algumas substâncias tem ecceidade - Para uma abordagem mais detalhada da ecceidade e de qual seria a evidência de que os objetos materiais têm ou não têm ecceidade, ver meu artigo “Thisness”, Australasian Journal of Philosophy, 73 (1995), 389-400. Este artigo tem sido objeto de algumas críticas detalhadas por parte de John O’Leary-Hawthorne e J. A. Cover in “Framing the Thisness Issue”, Australasian Journal of Philosophy 75 (1997), 102-8. Uma crítica completamente injustificada que ele faz é que (p. 104) meu “princípio diz respeito à duplicação solo numero intra-mundo” e que “é surpreendente que Swinburne não apresente explicitamente versões intra-mundo de seu princípio”. Entretanto, eu deixo explicitamente claro (p. 390) que todos os princípios que eu discuti (incluindo, portanto, aquele princípio nos termos dos quais eu defini ecceidade), “dizem respeito não meramente a identidade de indivíduos num dado mundo, mas em todos os mundos possíveis” - Uma substância tem ecceidade se pudesse existir em vez dela (ou tanto quanto ela) uma substância diferente que tivesse todas as mesmas propriedades que ela, incluindo as propriedades relacionadas ao passado e ao futuro tais como continuidade espaço-temporal de uma substância tendo tais e tais propriedades monádicas.

Se nenhuma substância tem ecceidade, então a história do mundo consistirá de feixes de propriedades co-instanciadas tendo propriedades adicionais, incluindo relações espaço-temporais com os feixes anteriores, passando a existir e deixando de existir, e causando a subseqüente existência e as propriedades dos outros feixes. Existem muitas maneiras diferentes (igualmente bem justificadas por meio de nosso metacritério inicial para um sistema de categorias metafísicas) de dividir o mundo em substâncias no tempo, conforme o tamanho do feixe e quais membros do feixe são considerados essenciais para a substância que eles formam. E, conforme quais membros do feixe são considerados essenciais, também haveria diferentes maneiras de determinar a continuidade da substância no tempo. As partes elementares também serão individuadas por propriedades. Obviamente tal propriedade para individuar partes que ocupam espaço é a continuidade espaço-temporal de uma substância que tem as mesmas propriedades essenciais das espécies, conjugada talvez com a continuidade causal (ou seja, a primeira substância causando a existência das substâncias posteriores); para as substâncias não-espaciais, a continuidade temporal mais a continuidade causal parecem ser as condições óbvias. E necessitamos de uma única condição para assegurar que no máximo uma substância posterior a uma dada substância que satisfaz ambas estas condições é a substância original. Mas existem novamente maneiras alternativas em que essas condições poderiam ser detalhadas, uma das quais nos permitiria contar toda a história do mundo. Se considerarmos a continuidade espaço-temporal necessária para a identidade das substâncias no tempo, então teremos que dizer que se um elétron desaparece de uma órbita e causa o aparecimento de um elétron em outra órbita sem existir continuidade espaço-temporal entre eles, eles são elétrons diferentes. Contudo, se insistirmos apenas na continuidade causal, então eles serão o mesmo elétron. Mas nós podemos contar toda a história do mundo de ambas as maneiras, e ambas as histórias serão verdadeiras; elétrons de ambos os tipos existirão.

Se, entretanto, algumas substâncias têm ecceidade, uma história completa do mundo terá de descrever as continuidades não meramente dos feixes de propriedades co-instanciadas, mas da ecceidade que subjaz a certos feixes (ou seja, do que é que faz a diferença entre dois feixes das mesmas propriedades com, qualitativamente, a mesma história). Desse modo, deve ser uma condição necessária das partes elementares das substâncias serem idênticas que elas tenham a mesma eccedidade - Se as partes simples têm a mesma ecceidade, então a substância composta delas terá uma ecceidade constituída por estas e vice-versa. Eu, por conseguinte, rejeito uma visão que Galois chama “haecceitism forte”, a visão de que dois objetos (O num mundo m, e O* num mundo m*) poderiam não obstante ser diferentes, mesmo se eles tivessem absolutamente as mesmas propriedades e fossem compostos de constituintes idênticos. Ver A. Galois, Occasions of Identity, Clarendon Press, 1998, p. 250-51.) - . Para aquelas substâncias físicas que são objetos materiais, a ecceidade é ser feita da mesma matéria. Nós temos então a teoria hilemórfica de que a identidade de um objeto material requer a identidade das propriedades essenciais das espécies e a identidade da matéria subjacente. Neste caso, se (e somente se) o elétron na nova órbita é composto da mesma matéria que o velho elétron, ele é o velho elétron. A continuidade espaço-temporal agora não é mais uma condição independente para uma substância física continuar a existir, mas provavelmente evidência (falível) de que a mesma matéria continuou a existir; e, assim, dado que as outras propriedades essenciais das espécies arbitrariamente escolhidas são preservadas, que os mesmos objetos materiais existem. A continuidade espaço-temporal é evidência da identidade da matéria na medida em que é a melhor (i.e. a mais provável) teoria física de como o comportamento da matéria tem a conseqüência de que ela se move espacialmente em trajetórias contínuas.

Não sabemos se os objetos materiais inanimados do nosso mundo têm ecceidade, e a esse respeito não sabemos o que constituiria uma descrição completa do nosso mundo. Se eles têm ecceidade, então nem todo relato do mundo que descreve os modelos de distribuição das propriedades no mundo será um relato correto. Precisamos de um relato que individualize as partes elementares dos objetos materiais inanimados (discriminadas enquanto tais de uma maneira clara) sendo a mesma substância só se eles têm a mesma matéria. Então agregados mereológicos terão de ter a mesma matéria durante toda sua existência, enquanto que os organismos podem gradualmente substituir a matéria.

Fornecer a história completa do mundo, aleguei, envolve listar todos os eventos de um subconjunto que acarreta todos os eventos que têm acontecido sob suas descrições canônicas. Vimos no caso das propriedades que isso envolve discriminar as propriedades envolvidas por meio de designadores informativos. E seguramente nós necessitamos para designar de maneira informativa também as substâncias – simplesmente fornecer uma descrição delas, ainda que uma descrição rigidificada, que nos dissesse o que seria verde, quadrado ou sentir dor. Designar de maneira informativa uma propriedade envolve conhecer certo conjunto de condições necessárias e suficientes para alguma coisa ser aquela propriedade. Considerações similares devem ser aplicadas às substâncias. Mas aqui temos de notar que embora conheçamos designadores informativos para muitas propriedades, não conhecemos designadores informativos para muitas substâncias. Muitas vezes não conhecemos as condições necessárias e suficientes para uma substância ser aquela substância; pois muitas vezes não sabemos o que constituiria uma futura substância ou uma substância num outro mundo aquela substância. Uma das principais razões para nossa incapacidade de designar de maneira informativa as substâncias é que não sabemos a respeito de algumas espécies de substâncias, e em particular dos objetos materiais inanimados, se eles têm ou não ecceidade (e, assim, por exemplo, se devem ser individuados em parte por sua matéria subjacente) ou se devem ser individuados somente por meio das propriedades, incluindo as propriedades (espaço temporal e/ou outras) de continuidade.

4. Substâncias Mentais
Suponha agora que nenhuma substância tem ecceidade, e, portanto, que a opinião de que todas as substâncias são feixes seja correta. Substâncias mentais são aquelas substâncias que têm essencialmente propriedades mentais. Por conseguinte, se há substâncias mentais depende de como um feixe reúne feixes de propriedades em substâncias. Propriedades mentais com partes físicas (tal como a propriedade de intencionalmente levantar um dos braços) são naturalmente consideradas como pertencendo à substância a qual a parte física pertence. Mas alguém pode colocar propriedades mentais puras (tal como a propriedade de tentar levantar um dos braços) ou no mesmo feixe que a propriedade física a qual ela é mais estreitamente relacionada causalmente – aquela que é a causa dela ser instanciada ou cuja instanciação é causada por ela, - (Como proposto, por exemplo, por Jerome Shaffer, “Could Mental Processes be Brain Processes”, Journal of Philosophy 58 (1961) - ou – seguindo Hume - “A verdadeira idéia de uma mente humana é a que a considera um sistema de diferentes percepções ou diferentes existências, encadeadas pela relação de causa e efeito, e que mutuamente produzem, destroem, influenciam e modificam-se umas às outras”. David Hume, Tratado da Natureza Humana, 1.4.6. - alguém pode colocar as propriedades mentais puras num feixe de outras propriedades mentais puras com cuja instanciação ele é relacionado causalmente (e talvez também relacionado pelas relações de similaridade e aparente memória). No modelo Humeano haveria, claramente, substâncias mentais, pois alguns feixes de propriedades seriam individuados por suas propriedades mentais. Parece, entretanto, que no modelo não-Humeano alguém poderia individuar substâncias somente por meio de suas propriedades físicas e considerar as propriedades mentais como simplesmente membros contingentes dos feixes, e nesse caso as únicas substâncias seriam as substâncias físicas. Alternativamente alguém poderia individuar substâncias pelo menos parcialmente em termos de propriedades mentais, e neste caso haveria substâncias mentais. Ambas as maneiras de descrever o mundo forneceriam uma descrição completa. Então torna-se uma questão arbitrária dizer que há substâncias mentais.

Contrariamente a este modelo, entretanto, não é possível ter uma descrição completa do mundo em que todas as substâncias sejam individuadas somente por meio das propriedades físicas. Pois é um dado evidente da experiência que eventos mentais conscientes de diferentes tipos (sensações visuais, sensações auditivas, etc.) são co-experienciados, isto é, pertencem à mesma substância. Qualquer descrição do mundo que tenha como conseqüência que eventos co-experienciados não pertencem à mesma substância será uma descrição falsa. Portanto, deve haver substâncias cuja identidade é constituída em parte por ser a substância à qual alguma série de eventos mentais co-experienciados pertence. Se essas substâncias são também substâncias às quais os eventos físicos pertencem e que são causalmente mais diretamente conectados a esses eventos mentais – permitam-me chamá-los de correlatos físicos dos eventos mentais, então seus limites espaciais num tempo e num outro tempo nunca podem ser mais próximos que aqueles dos correlatos físicos dos eventos co-experienciados. A identidade da substância é assim constituída por uma propriedade mental, de modo que seus limites não são mais próximos que os limites dos correlatos físicos daquilo que eu co-experimento. Nós não podermos dividir o mundo é uma maneira arbitrária de individuar substâncias somente por meio de propriedades físicas, e supor que as propriedades mentais são meramente propriedades contingentes dessas substâncias. Pois ainda que (embora pareça não ser o caso empiricamente) a base do cérebro, por exemplo, as minhas sensações visuais e as minhas sensações auditivas fossem idênticas, isso ainda não acarretaria o dado da experiência de que elas seriam ambas tidas pela mesma pessoa. Nós só podemos incluir esse dado numa descrição completa do mundo se supusermos que a identidade das substâncias que têm propriedades mentais conscientes é determinada pelo fato de que as propriedades mentais que elas têm ao mesmo tempo são co-experienciadas.

É também um evidente dado da experiência que certos eventos mentais são tidos sucessivamente pela mesma pessoa. As experiências requerem tempo – ainda que apenas um segundo ou dois; e cada experiência que eu tenho eu experiencio como consistindo de duas partes menores. Sou o sujeito comum da experiência de ouvir a primeira metade de sua sentença e a experiência de ouvir a segunda metade de sua sentença. E, contudo, o simples fato de que essas experiências são causadas por eventos na mesma parte da substância física que é meu cérebro não acarreta isso. Segue-se, por ambas essas razões, que não podemos descrever o mundo completamente exceto em termos de substâncias mentais que – se elas têm propriedades físicas – são as substâncias que são tanto em um tempo como num outro tempo, cujos limites não são mais estreitos que aqueles dos correlatos físicos daquilo que um sujeito co-experiencia.

Será evidente que não fará diferença para o caso que existam substâncias mentais se a teoria dos feixes de todas as substâncias físicas for falsa, e os objetos materiais inanimados, incluindo as moléculas-cerebrais, tiverem ecceidade (e assim sendo a mesma substância não é somente uma função das propriedades, mas da matéria em que as propriedades são instanciadas). Pois ainda não se seguiria disso que as propriedades mentais seriam co-experienciadas. Podemos descrever as ocorrências de co-experiências só se admitirmos a existência de substâncias mentais.

Esta conclusão é reforçada quando consideramos alguns dados neurofisiológicos e experimentos mentais bastante conhecidos. A questão crucial quando os hemisférios do cérebro de um paciente são separados é se (na hipótese de que as experiências sejam produzidas por ambos os hemisférios cerebrais) as experiências produzidas pelo hemisfério esquerdo de seu cérebro são co-experienciadas com as experiências produzidas pelo hemisfério direito de seu cérebro. Não se trata simplesmente de que algumas maneiras de separar o cérebro ou de definir quando ele começa ou deixa de existir forneceriam explicações mais simples do que outras de como o cérebro ou o corpo se comporta, mas que algumas maneiras acarretariam a não ocorrência de um dado da experiência, cuja ocorrência seria evidente para seu sujeito ou sujeitos – que um sujeito teve ambas as séries de experiências, ou que ele teve somente uma série. Se existe uma pessoa ou duas não é algo acarretado por quais experiências são conectadas a quais hemisférios cerebrais, ou a alguma coisa física diferente. Para descrever o que está acontecendo precisamos individuar as pessoas em parte pelas experiências que elas têm, e não pela extensão da unidade de um cérebro. Somente para descrever a experiência, não para explicá-la, necessitamos de substâncias mentais individuadas pelo menos em parte segundo esta maneira.

Esta conclusão é, além disso, reforçada quando consideramos o experimento mental do transplante de metade do cérebro. O cérebro de S é tirado de sua cabeça, dividido em duas metades, essas metades são colocadas em duas cabeças diferentes daquelas cujos cérebros foram removidos, alguns bits adicionais são acrescentados de um clone de S, os bits são conectados ao sistema nervoso e nós então temos duas pessoas funcionando com vidas mentais. Mas se nós conhecemos somente a história de todos os bits físicos, descritos em termos de suas propriedades (e, se preciso for, de sua matéria subjacente) e quais propriedades mentais são instanciadas em todas as pessoas envolvidas, parece haver algo crucial que ignoramos – qual (se uma ou outra) da subsequente pessoa é S. Se S sobreviveu a uma semelhante operação traumática parece ser uma questão evidentemente factual, e também uma questão indeterminada pelas propriedades físicas e mentais associadas às substâncias físicas. Somente se S é uma substância mental (a quem a experiências co-experienciadas ocorrem), pode haver uma verdade desconhecida sobre se S sobreviveu ou não a esta operação – o que seguramente às vezes poderá ocorrer. E mesmo que, como alguns filósofos supuseram - Apresentei argumentos bastante sucintos a favor da necessária indivisibilidade da alma ao argumentar contra a possibilidade de fissão de pessoas em The Evolution of the Soul (revised edition, Clarendon Press, 1997) p. 149-50, e contra a possibilidade de fusão de pessoas em minha contribuição a (ed.) Sydney Shoemaker and Richard Swinburne Personal Identity (Basil Blackwell, 1984) p.44-5. - , em tais casos cada uma das pessoas recentes seja parcialmente eu, esta não pode ser uma verdade necessária porque a história de todos os bits físicos e de todas as propriedades mentais associadas a elas é compatível com o fato de nenhuma pessoa ser plenamente eu, ou com só uma delas ser plenamente eu. Nós ainda ignoraríamos quais das sub-sequentes pessoas (se alguma) seria plenamente eu. Conclui-se que as substâncias mentais não são idênticas às substâncias físicas e que sua existência não é acarretada por elas, visto que pode haver mundos em que as substâncias físicas (cérebros e a extensão de sua continuidade) são as mesmas mas existem diferentes substâncias mentais (duas num mundo, somente uma em outro).

5. Substâncias mentais puras
Minha alegação final é que os seres humanos, você e eu, são substâncias mentais puras. Muitos experimentos mentais no espírito de Descartes parecem descrever situações concebíveis e constituir, desse modo, uma forte evidência da possibilidade lógica de eu existir sem um corpo, ou continuar a existir quando meu corpo é destruído. Permitam-me citar o experimento mental original de Descartes:

“Compreendi que enquanto eu pudesse conceber que eu não tinha nenhum corpo... Eu não poderia conceber que eu não exista. Por outro lado, se eu tivesse apenas cessado de pensar, ... eu não teria nenhuma razão para pensar que eu tivesse existido. A partir disso reconheci que eu era uma substância cuja natureza e essência toda é pensar e que para sua existência não é necessário nenhum lugar, nem depende de qualquer coisa material”.

Podemos compreender estas e muitas hipóteses similares (vida desencarnada depois da morte, etc.); elas não parecem conter qualquer contradição – e isso é uma forte evidência de que o que parecemos conceber é logicamente possível. Mas, diz o adversário, e esta objeção é relevante também relativamente aos experimentos mentais anteriores que mencionei, a questão é se tais hipóteses são “metafisicamente possíveis”. Uma possibilidade lógica é simplesmente uma possibilidade cuja negação não envolve uma contradição. Mas “Hesperus não é Phosphorus” ou “água não é H2O (‘Hesperus’, ‘Phosphorus’ ‘água’ sendo usados nos sentidos antigos) não envolve nenhuma contradição, mas o que se alega é absolutamente impossível, “metafisicamente impossível”. O metafisicamente impossível é mais abrangente que o logicamente impossível. Mas essa divergência entre o logicamente impossível e o metafisicamente impossível só surge quando substâncias ou propriedades são discriminadas por meio de designadores não informativos. Se não sabemos perfeitamente o que Hesperus é, então não sabemos perfeitamente o que ele pode ser. Entretanto, “eu” (ou ‘Richard Swinburne’ como empregado por mim) é um designador informativo.

Pois eu conheço as condições necessárias e suficientes a fim de uma substância ser essa substância. Posso reconhecer (com as faculdades funcionando perfeitamente, estando favoravelmente posicionado e não sujeito à ilusão) quando elas se aplicam e quando não se aplicam e fazer simples inferências a partir de suas aplicações. Pois eu posso sempre estar favoravelmente muito bem posicionado e totalmente livre de ilusão quando eu me percebo
como o sujeito da experiência e da ação – infalivelmente. Nisso eu sou, na frase de Shoemaker, “imune ao erro devido a má-identificação”. Não posso reconhecer que uma experiência consciente presente está tendo lugar e, não obstante, confundi-la como sendo sua quando ela na verdade é minha, ou vice-versa. Posso confundir-me se eu me distingo por meio de um corpo – por exemplo, acreditando falsamente que a pessoa vista no espelho sou eu – mas esse será um caso de ilusão. Portanto, eu conheço a essência daquele acerca de quem estou falando quando falo sobre mim.

Evidentemente eu posso futuramente não me lembrar direito do que eu fiz no passado, e na realidade não me lembrar direito como empreguei a palavra “eu” no passado. Mas este tipo de problema surge com toda afirmação, seja qual for, sobre o passado. “Verde” é um designador informativo de uma propriedade, mas eu posso futuramente não me lembrar direito que coisas eram verdes e inclusive o que eu significava por “verde” no passado. A diferença entre designadores informativos e não informativos é que (quando minhas faculdades estão funcionando bem, quando estou favoravelmente posicionado e não sujeito à ilusão) posso reconhecer quais objetos são corretamente discriminados atualmente por meio de designadores informativos, mas não geralmente quando eles são discriminados por designadores não informativos (na ausência de informação adicional). E, dessa maneira, eu sei a que corresponde uma asserção sobre o passado ou futuro quando ela é feita por meio de designadores informativos, mas não quando ela é feita por meio de designadores não informativos. Eu sei o que constituiria uma experiência passada ou futura ser minha, o que é uma pessoa futura ou passada ser eu. Não é assim com Hesperus ou a água. Eu não sei (no sentido definido) o que constituiria uma substância passada ou futura ser água ou Hesperus se me encontro simplesmente na condição de alguém que usa o termo “água” no século XVIII, ou o termo “Hesperus” no início do mundo antigo ou mesmo hoje – se eu não sei se um planeta tem certa ecceidade para ser Hesperus.

Concluo que, na ausência de alguma contradição lógica oculta (e eu quero dizer “lógica”) na descrição de Descartes de seu experimento mental – para supor o que seria imensamente implausível – o experimento mostra o que ele pretende mostrar: Descartes é uma substância mental pura. Ele poderia existir sem qualquer existência física, e dessa maneira as substâncias mentais puras existem logicamente independentemente das substâncias físicas. Cada um de nós pode fazer o mesmo experimento a respeito de nós mesmos e, desse modo, mostrar que nós somos substâncias mentais puras. E cada um de nós pode considerar o experimento mental anterior como feito para si mesmo; e então esta objeção sobre o logicamente possível nem sempre ser metafisicamente possível não terá qualquer força.

Existem, entretanto, duas espécies de substâncias mentais puras – aquelas que não têm um corpo como uma parte contingente, e aquelas que têm. Espíritos não têm corpos, por exemplo, ao passo que os seres humanos que vivem na Terra têm corpos. Mas uma vez que o corpo que é atualmente meu poderia continuar a existir como um corpo vivo sem ter qualquer conexão causal com qualquer substância mental, ou poderia tornar-se em vez disso o corpo de uma substância mental diferente; e visto que eu poderia, sob tais circunstâncias, continuar a existir e ter uma vida mental sem um corpo, eu agora consisto de duas partes separadas, – meu corpo (a parte contingente de meu eu), e o resto de meu eu que podemos chamar de minha alma (a parte essencial de meu eu).


Mas o que fixa a identidade das substâncias mentais puras? Se os objetos materiais têm ou não ecceidade, minha alma tem sua própria ecceidade, independentemente de qualquer ecceidade possuída por algum cérebro ao qual ela está conectada. Pois eu poderia ter tido uma vida mental diferente de uma vida que eu tive, e parece concebível (e, portanto, é provavelmente logicamente possível) que duas diferentes almas não-corporificadas poderiam sempre ter tido a mesma vida mental ao mesmo tempo – a mesma sucessão de propriedades mentais poderiam ser instanciadas em cada uma delas. Portanto, a substância mental não é a substância que é ela em virtude meramente das propriedades que ela tem. De maneira que a opinião Humeana da identidade pessoal como constituída por conexões causais (e outras relacionais) entre nossas presentes propriedades mentais instanciadas deve ser rejeitada. O mesmo ponto é apresentado pela aparente conceptibilidade de um mundo M2 em que para cada substância em M1 existe uma substância que tem as mesmas propriedades que ele e vice-versa (e qualquer matéria física subjacente às propriedades é a mesma em ambos os mundos), mas onde uma pessoa S que existe em M1 não existe em M2. A pessoa que vive em M2 a vida (física e mental) que S vive em M1 não é S. E certamente este mundo poderia ser diferente somente considerando que a pessoa que viveu minha vida era não eu. Pois ela não é acarretada pela descrição completa do mundo em seus aspectos físicos e em relação a quais feixes de propriedades mentais são instanciadas na mesma substância que eu, percebido como o verdadeiro sujeito de certas propriedades mentais, tenho as propriedades mentais ou físicas particulares que eu tenho e estou conectado com o corpo com o qual estou conectado. Sou essencialmente minha alma, cuja identidade é irredutível a qualquer outra coisa.

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