por Augustus Nicodemus Lopes
Recentemente li uma crítica feita aos calvinistas
que eles costumam escapar de dilemas teológicos resultantes de sua própria
lógica recorrendo ao conceito de “mistério”. Ou seja, os calvinistas, depois de
se colocarem a si mesmos numa encruzilhada teológica, candidamente confessam
que não sabem a resposta para a mesma.
A crítica em particular era sobre a doutrina da
predestinação. Segundo a crítica, os calvinistas insistem que Deus decretou
tudo que existe, mas quando chega o momento de explicar a existência do mal no
mundo, a liberdade humana e a responsabilidade na evangelização, eles
simplesmente dizem que não sabem a resposta para os dilemas lógicos criados: se
Deus predestinou os que haveriam de ser salvos e condenados, como podemos
responsabilizar os que rejeitam a mensagem do Evangelho? Os calvinistas, então,
de acordo com a crítica, recorrem ao que é denominado de antinômio, a
existência pacífica de duas proposições bíblicas aparentemente contraditórias
que não podem ser harmonizadas pela lógica humana.
A verdade é que, além da soberania de Deus, temos
outras doutrinas na mesma condição, como a definição clássica da Trindade,
mantida não somente pelos calvinistas, mas pelo Cristianismo histórico em
geral. Por um lado, ela afirma a existência de um único Deus. Por outro, afirma
a existência de três Pessoas que são divinas, sem admitir a existência de três
deuses.
Ao longo da história da Igreja vários tentaram
resolver logicamente o dilema causado pela afirmação simultânea de duas
verdades aparentemente incompatíveis. Quanto ao mistério da Trindade, as
soluções invariavelmente correram na direção da negação da divindade de Cristo
ou da personalidade e divindade do Espírito Santo; ou ainda, na direção da
negação da existência de três Pessoas distintas. Todas essas tentativas sempre
foram rechaçadas pela Igreja Cristã por negarem algum dos lados do antinômio.
Um outro exemplo foram as tentativas de resolver a
tensão entre as duas naturezas de Cristo. Os gnósticos tendiam a negar a sua
humanidade para poder manter a sua divindade. Já arianos, e mais tarde,
liberais, negaram a sua divindade para manter a sua humanidade. Os
conservadores, por sua vez, insistiram em manter as duas naturezas e confessar
que não se pode saber como elas podem coexistir simultânea e plenamente numa
única pessoa.
No caso em questão, as tentativas de solucionar o
aparente dilema entre a soberania de Deus e a responsabilidade humana sempre
caminharam para a redução e negação da soberania de Deus ou, indo na outra
direção, para a anulação da liberdade humana. No primeiro caso, temos os
pelagianos e arminianos. No outro, temos os hipercalvinistas, que por suas
posições deveriam mais ser chamados de “anticalvinistas”. Mais recentemente, os
teólogos relacionais chegaram mesmo a negar a presciência de Deus pensando
assim em resguardar a liberdade humana.
Há várias razões pelas quais eu resisto à tentação
de descobrir a chave desses enigmas. A primeira e a mais importante é o fato
que a Bíblia simplesmente apresenta vários fatos sem explicá-los. Ela afirma
que há um Deus e que há três Pessoas que são Deus. Não nos dá nenhuma
explicação sobre como isso pode acontecer, mesmo diante da aparente
impossibilidade lógica do ponto de vista humano. Os próprios escritores
bíblicos, inspirados por Deus, preferiram afirmar essas verdades lado a lado,
sem elucidar a relação entre elas. Em seu sermão no dia de Pentecostes, Pedro
afirma que a morte de Jesus foi predeterminada por Deus ao mesmo tempo em que
responsabiliza os judeus por ela. Não há qualquer preocupação da parte de Pedro
com o dilema lógico que ele cria: se Deus predeterminou a morte de Jesus, como
se pode responsabilizar os judeus por tê-lo matado? Da mesma forma, Paulo, após
tratar deste que é um dos mais famosos casos de antinomínia do Novo Testamento
(predestinação e responsabilidade humana), reconhece a realidade de que os
juízos de Deus são insondáveis e seus caminhos inescrutáveis (Rm 11.33).
A segunda razão é a natureza de Deus e a revelação
que ele fez de si mesmo. Para mim, Deus está acima de nossa possibilidade plena
de compreensão. Não estou concordando com os neo-ortodoxos que negam qualquer
possibilidade de até se falar sobre Deus. Mas, é verdade que ninguém pode
compreender Deus de forma exaustiva, completa e total. Dependemos da revelação
que ele fez de si mesmo. Contudo, essa revelação, na natureza e especialmente
nas Escrituras, mesmo suficiente, não é exaustiva. Não sendo exaustiva, ela se
cala sobre diversos pontos – e entre eles estão o relacionamento lógico entre
os pontos que compõem a doutrina da Trindade, da pessoa de Cristo e da
soberania de Deus.
A terceira razão é que existe um pressuposto por
detrás das tentativas feitas de explicar racionalmente os mistérios bíblicos,
pressuposto esse que eu rejeito: que somente é verdadeiro aquilo que podemos
entender. Não vou dizer que isso é exclusivamente fruto do Iluminismo do séc.
XVII pois antes dele essa tendência já existia. O racionalismo acaba
subordinando as Escrituras aos seus cânones. Prefiro o lema de Paulo, “levando
cativo todo pensamento à obediência de Cristo” (2Coríntios 10.5). Parece que os
racionalistas esquecem que além de limitados em nosso entendimento por sermos
criaturas finitas, somos limitados também por nossa pecaminosidade. É claro que
mediante a regeneração e a iluminação do Espírito podemos entender
salvadoramente aquilo que Deus nos revelou em sua Palavra. Contudo, não há
promessas de que regenerados e iluminados descortinaremos todos os mistérios de
Deus. A regeneração e a iluminação não nos tornam iguais a Deus.
Além dos mistérios mencionados, existem outros
relacionados com a natureza de Deus e seus caminhos. Diante de todos eles,
procuro calar-me onde os escritores bíblicos se calaram, após esgotar toda
análise das partes do mistério que foram reveladas. Não estou dizendo que não
podemos ponderar sobre o que a Bíblia não fala – mas que o façamos conscientes
de que estamos apenas especulando, no bom sentido, e que os resultados dessas
especulações não podem ser tomados como dogmas.
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