William Lane Craig, filósofo e apologista cristão:
"O debate sobre ciência e fé precisa cada vez mais da Filosofia"
Uma palestra na noite de hoje, no Mosteiro de São
Bento, em São Paulo, marca o início da agenda do filósofo e apologista cristão
William Lane Craig no Brasil. Craig é muito conhecido por seus livros e,
especialmente, por seus debates com nomes importantes do ateísmo militante (e
também pelos debates que não ocorreram, como a ocasião recente em que Richard
Dawkins recusou um convite). Na manhã de hoje, de seu hotel em São Paulo, Craig
conversou com o Tubo de Ensaio por alguns minutos, por telefone, e defendeu que
os filósofos sejam mais ativos nos debates sobre a relação entre ciência e
religião.
Por Marcio Campos
Por muitos
séculos a relação entre ciência e fé foi vista como harmônica, mas hoje o
discurso dominante é o do antagonismo. Como isso ocorreu?
Estamos vendo o resultado de um esforço deliberado,
iniciado no fim do século 19, de reescrever a história de ciência de acordo com
esse modelo de conflito. Até aquela época, o relacionamento entre ciência e
teologia era descrito como uma aliança; os melhores cientistas eram cristãos.
Mas, entre o fim do século 19 e o início do século 20, houve um forte esforço
para reescrever a história da ciência de modo que ela mostrasse a existência de
um antagonismo histórico. Nesse sentido, Andrew Dickson White criou o paradigma
deste modelo de conflito com seu livro Uma história da guerra entre a ciência e
a tecnologia na Cristandade. Hoje, os historiadores da ciência veem essa obra
como uma piada, uma peça de propaganda; os que realmente conhecem a história
sabem que o conflito não é uma representação adequada do relacionamento
histórico entre ciência e religião. É verdade que essa noção de antagonismo
persiste na cultura popular, mas não é mais presente no trabalho acadêmico, nem
na Teologia, nem na história da ciência. Neste século 21 estamos no limiar de
uma era de mais abertura, por parte da ciência, à possibilidade um criador e
designer do universo. É uma abertura que não tem precedentes nas últimas
décadas.
Se na
academia a percepção já é outra, por que na cultura popular o discurso do
conflito ainda persiste? E como trazer para o público em geral aquilo que já
está espalhado entre os especialistas?
Sempre existe uma defasagem entre o que ocorre na
academia e o que chega à cultura popular. Obviamente é um processo que leva
tempo. É necessário haver popularizadores: pessoas que escrevam livros e
artigos de jornal direcionados ao público em geral, aos que não têm formação
nem em ciência, nem em Teologia, para explicar o diálogo entre ciência e
religião que está havendo na academia. Os ateus militantes fazem isso muito
bem; cientistas como Richard Dawkins e Lawrence Krauss escrevem e vendem livros
que são populares e defendem o ateísmo. Precisamos que gente que seja
igualmente bem-sucedida nesse trabalho, mas defendendo a harmonia entre ciência
e fé.
Quem seriam
hoje esses "popularizadores" da harmonia entre ciência e fé?
John Polkinghorne é um ótimo exemplo, pois ele é
físico quântico e também clérigo anglicano, tendo escrito uma série de livros
sobre ciência e religião. Outro muito conhecido é Francis Collins, chefe do
Projeto Genoma, um biólogo cujas obras também são dirigidas para o público em
geral. Alister McGrath é um teólogo que também tem formação em Química, mas
escreve mais do ponto de vista teológico. Esses três são mais conhecidos, mas
eu também queria destacar o cosmólogo Alexander Vilenkin, da Tufts University.
Ele não é cristão; se não me engano, é agnóstico. Seu trabalho de popularização
da ciência é muito bom e não tem o preconceito antirreligioso que observamos em
outros autores como os já mencionados Dawkins e Krauss.
Algum deles
teria o potencial para se tornar um "ícone pop" como foi Carl Sagan?
Sagan teve a grande vantagem de fazer a série
Cosmos, que fez dele extremamente popular; ele usava muito bem os meios de
comunicação. Entre as vozes que defendem a harmonia entre ciência e fé, não
vejo ninguém fazendo algo na escala de Sagan. Esse tipo de presença exige uma
pessoa que não apenas seja um expert na área, mas também saiba aparecer na
mídia muito bem.
Já que
falamos dos meios de comunicação, qual sua avaliação da maneira como a imprensa
vem retratando as questões sobre as quais estamos conversando aqui?
A maneira como a mídia popular lida com a
popularização da ciência é bem frustrante para mim. Ela segue um roteiro
previsível na hora de mostrar a ciência moderna: tenta empurrar interpretações
da ciência que são radicais, contrárias ao bom senso e altamente especulativas,
em vez de se apoiar nas descobertas sólidas da ciência moderna. O que eu vejo é
um esforço deliberado de fazer a ciência moderna parecer metafísica, o que leva
a uma abordagem sensacionalista. Isso normalmente é feito com uma série de
expressões metafóricas que não ajudam no bom entendimento dos assuntos
científicos; chega a ser cansativo. Eu até entendo por que os veículos de
comunicação agem assim, já que é da natureza da imprensa buscar o
extraordinário, o extremo, o que desafia as concepções arraigadas, porque é o
que atrai interesse. Mas não acho que isso ajude a entender o que a ciência
moderna realmente diz sobre o mundo.
Como estará
a discussão sobre ciência e religião em cinco, ou dez anos?
Não creio que teremos mudanças radicais no caminho
que estamos trilhando. Agora cientistas, filósofos e teólogos têm um diálogo
saudável em que uns estão abertos ao que os outros oferecem, mas espero que a
discussão envolva mais os filósofos. Agora estamos começando a perceber que as
áreas que se sobrepõem no diálogo entre ciência e religião estão muito ligadas
à Filosofia; como nem teólogos, nem cientistas são muito treinados nesse campo,
o diálogo tem interferências porque está ocorrendo entre pessoas que, em geral,
são "filosoficamente ingênuas". Um diálogo realmente frutuoso precisa
envolver mais filósofos, especialmente os que conheçam filosofia da ciência e a
metafísica teológica. Os filósofos serão os mediadores entre as ciências e os
teólogos – é um "triálogo", não um diálogo.
Na América
Latina em geral, as questões bioéticas normalmente são mais relevantes que o
debate sobre as origens do universo ou do homem...
O que eu acabei de dizer sobre a importância da
Filosofia se aplica aqui também. A ciência é eticamente neutra, não tem nada a
dizer sobre o que bom, mau, certo ou errado. Você não acha valores num tubo de
ensaio. Assim, em questões bioéticas é necessário trazer pessoal da Ética, que
é justamente uma área da Filosofia. A ciência proporciona a informação – por
exemplo, sobre o status biológico do embrião ou do feto; mas não podemos buscar
nela valores éticos. Aí precisamos da Filosofia e da Teologia para nos guiar em
relação ao que é eticamente permissível. Sem isso caímos no utilitarismo, na
ideia de que o tecnicamente viável é moralmente permissível, o que é absurdo,
sem justificativa; foi o que levou ao nazismo, o mesmo tipo de raciocínio que
justificou a engenharia genética para criar uma super-raça e se livrar dos
indesejados e exterminá-los, já que era tecnicamente possível. As pessoas mais
sensatas percebem que isso é altamente antiético.
Muitos
conhecem suas críticas à teoria da evolução...
Vamos colocar desta maneira: não é que eu seja
crítico; eu digo que tenho uma atitude cética em relação a certos aspectos da
evolução, porque me parece que eles são motivados mais por pressuposições
filosóficas que pela evidência física. Por isso ela não me convence – mas isso
não significa que eu não esteja aberto à possibilidade.
Então vamos
supor, por um minuto, que a teoria da evolução seja totalmente verdadeira; em
ocasiões anteriores, o senhor afirmou que ela não ameaçaria o Cristianismo, ou
a crença religiosa. Por quê?
Porque o Deus transcendente que é o criador e o
designer do universo poderia muito bem ter determinado o comportamento da
natureza e as condições iniciais no Big Bang que levassem ao eventual
surgimento de vida inteligente no universo, e não existe motivo para pensar que
Ele não pudesse ter feito dessa forma.
E qual a sua
avaliação sobre o criacionismo de Terra jovem?
Infelizmente os criacionistas acabam fazendo as
pessoas se tornarem mais céticas em relação à religião que em relação à
ciência. Se eles tiverem sucesso em mostrar que existe conflito entre o
Cristianismo bíblico e a ciência moderna, a reação da cultura popular é
descartar o Cristianismo bíblico, não a ciência moderna. Isso será muito
contraproducente, já que que esse conflito é ilusório. A melhor estratégia em
relação a esse grupo é desacreditar não sua ciência, mas suas crenças
religiosas, por exemplo a leitura 100% literal da Bíblia.
Se pensarmos
no ateísmo militante e nos criacionistas, qual dos extremos deveria ser
considerado mais preocupante?
A maior ameaça vem da filosofia do naturalismo
científico; ainda vivemos à sombra do Iluminismo, em que o único árbitro da
verdade e fonte do conhecimento é a ciência natural, e por isso algo que não
pode ser provado não existe ou não é verdadeiro. Essa filosofia permeia a
cultura ocidental moderna.
Qual a sua
opinião sobre as recentes tentativas de Stephen Hawking e Lawrence Krauss de
demonstrar que o universo surgiu do nada, sem a necessidade de um criador?
É lamentável que estes cientistas tenham
representado tão mal a ciência moderna para o público em geral. Se uma pessoa
religiosa fizesse isso, seria acusada de distorção, mas com os cientistas isso
passa batido. Quando esses homens usam o termo "nada", usam de forma
equivocada, em vez de empregar o significado de "não ser". Se me
perguntam o que tenho na geladeira, e eu respondo "nada", não
significa que existe algo na geladeira, e esse algo seja o nada. Quero dizer é
que não há nada. Se você me pergunta o que comi no almoço e respondo
"nada", você não me pergunta "e que gosto tem?" (risos).
Seria ridículo. Mas esses homens usam o termo "nada" para se referir
a algo. O vácuo quântico, um espaço vazio preenchido com energia, é algo, é uma
realidade física com propriedades físicas, bem como um certo estado do universo
em que as concepções clássicas de espaço e tempo ainda não se aplicam. Krauss
chega a dizer que há diferentes tipos de "nada", o que já indica que
ele está usando o termo de forma equivocada. O nada não tem nenhuma
propriedade, é ridículo falar em diferentes tipos de nada. Isso é uma grotesca
distorção da linguagem, uma representação errada da ciência moderna em uma
tentativa de convencer leigos de que a ciência pode explicar a origem última do
universo.
Eles agem
assim por ignorância filosófica ou estão deliberadamente distorcendo o
conceito?
Cientistas como Hawking e Krauss não são treinados
em Filosofia e são bem ingênuos nesse campo. Eles não entendem as implicações
metafísicas do que dizem e caem em uma armadilha criada por suas próprias
palavras. Hawking, no começo de seu livro The grand design, diz que a Filosofia
está morta e que ela não acompanhou os desenvolvimentos da ciência moderna;
agora, cabe aos cientistas conduzir a luz do conhecimento. Essa, por si só, é
uma afirmação filosófica – e o resto do livro vai fazendo uma afirmação
filosófica após outra. Hawking faz filosofia em vez de ciência e não percebe.
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