A sociedade sai ganhando
Em mais de uma centena de cidades brasileiras e
inclusive do exterior, a Apac comprova que prisão não precisa ser barril de
pólvora, inferno ou universidade do crime.
Renata
Carrara
Imaginem uma cadeia sem armas, sem polícia e sem
algemas, onde os presos cuidam de tudo: da limpeza, da disciplina, da parte
burocrática, da enfermaria e – pasmem – da própria segurança. Onde dá para
contar nos dedos o número de fugas que aconteceram em mais de vinte anos e onde
nunca houve rebeliões.
Algum preso do regime fechado tem que ser levado ao
juiz e precisa de escolta? Os presos do semi-aberto cuidam disso.
Pensem num presídio por onde o visitante pode andar
livremente e sem medo, conversando com os presos, apertando suas mãos,
perguntando de suas famílias. Onde uma capela foi montada numa antiga
cela-forte – lembrança dos tempos em que ali funcionava uma "cadeia de
verdade".
Esse lugar existe, e está situado bem ao lado da
praça central de São José dos Campos/SP. O Presídio Modelo Humaitá é
administrado pela Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (Apac),
uma entidade de inspiração católica que encara a questão penitenciária de forma
nova, até irreverente.
Visita ao presídio – Ali, a ideia é que a proteção
da sociedade depende, e muito, da recuperação do preso, que é tratado pela Apac
como gente, e não como fera enjaulada.
Márcio Luís Santos Neves, 20, condenado a cinco
anos e quatro meses, é quem abre a porta que dá para a rua. Meio tímido, jeito
de adolescente, ele cumpre pena no regime semi-aberto. Um preso tomando conta
da chave da cadeia? Impossível!
A Apac não acha isso, assim como, para ela, Márcio
não é um "preso". Ele e todos os outros que cumprem pena lá dentro
são "recuperandos". Porque, de acordo com o pensamento da entidade,
não existe ninguém irrecuperável.
Somando cerca de oitocentos no total, os
recuperandos do Presídio Humaitá estão divididos entre o regime fechado (ou
primeiro estágio), o semi-aberto (segundo estágio) e o aberto (terceiro
estágio) – que exige apenas o comparecimento diário para assinatura do ponto.
Nada de anjinhos – Um corredor com três portas – a
primeira delas é aberta também por Márcio – leva o visitante até onde se
encontram os prisioneiros do regime fechado.
Aqui vivem homens que cometeram desde estelionatos
até assaltos à mão armada, estupros, homicídios e tráfico de entorpecentes. Que
ninguém imagine estar entrando numa ala reservada a anjos.
Sidney Roberto de Moraes, 37, condenado a cinco
anos e oito meses, abre a segunda porta para a realidade que aguarda a
repórter.
A seu lado, num reservado, está Fausto Jerônimo,
43, atendendo o telefone. Condenado a nove anos e dois meses, é auxiliar de
plantonista e, como seu colega Sidney, não vê a hora de alcançar o regime
semi-aberto, quando poderá deixar o presídio, só tendo que voltar à noite para
dormir.
Fausto abre a terceira e última porta, ao lado da
qual foi montada uma árvore de Natal, logo abaixo de um enorme mural que lembra
ao visitante, por meio de números, o que a Apac tem conseguido realizar na vida
de milhares de seres humanos em seus 25 anos de existência.
Estamos no regime fechado.
O que o leitor está imaginando agora? Um caos
geral? Superlotação? Sujeira e fedor? Gritaria? Gente sem ter o que fazer, de
cara feia, assustadora?
Imaginou errado.
Laborterapia – Corredores praticamente vazios, bem
como as onze celas, com dez camas cada uma, tudo limpo de dar gosto. A maior
parte dos recuperandos assiste a um documentário sobre drogas na sala de TV e
vídeo, que tem lugar para 62 pessoas.
Do outro lado do edifício, na sala de laborterapia,
onde os recuperandos recebem aulas de arte, Antônio Carlos de Almeida, 26,
condenado a quatro anos, dá os retoques finais num navio de enfeite que acabou
de montar.
Paciente na espera – terá direito a liberdade
condicional assim que cumprir dois terços da pena –, paciente na lida dos
instrumentos de sua arte, ele manuseia com habilidade... um estilete. Pelas
mãos dos presos da Apac passam diariamente dezenas de estiletes e outros
objetos cortantes, utilizados nas oficinas de arte e nos cursos
profissionalizantes para cabeleireiro, letrista e estampagem de camisetas.
Algum problema? Nenhum.
Ali, na sala de laborterapia, funciona também o
refeitório. Garfos e facas circulam livremente pelas mãos de todos, e a
história de muitos anos ensina que o visitante não precisa ficar com medo de
acolher o convite a se sentar à mesa, comer e conversar com os detentos.
Trabalho e educação – Preguiça e falta do que fazer
não integram o dicionário da Apac. A ocupação em tempo integral é incentivada,
porque faz parte do processo de recuperação do preso e o prepara para sua
futura reinserção social.
Mas existe também um aspecto muito prático: de
acordo com a Lei de Execução Penal (LEP), cada três dias de trabalho significam
um dia a menos de prisão, o que, juridicamente, é chamado de "remição de
pena".
O presídio recebe também professores para cursos de
alfabetização e primeiro grau. Na Apac, todo preso que passa do regime fechado
para o semi-aberto já fez do analfabetismo uma história de antigamente.
A LEP até que garante assistência educacional aos
presos, mas esta, como muitas outras, é uma determinação que o deficiente
sistema penitenciário não cumpre. Segundo dados do Censo Penitenciário
Nacional/94, 87% dos presos não têm primeiro grau completo.
Do dia-a-dia apaqueano fazem também parte a oração,
meditação, cânticos religiosos, palestras, etc. Na cartilha da Apac aprende-se
que religião é fundamental.
Ninguém é obrigado a acreditar em Deus nem a ser
católico (os evangélicos dispõem de um espaço próprio). Mas se insiste bastante
naquilo que ensinou Jesus: "Sem mim, nada podeis".
Um ajuda o outro – Roberto Donizette de Carvalho, o
Beto, 26, condenado a 25 anos de prisão, confessa que, na Apac, virou "um
novo Beto".
Há dois anos e oito meses no Presídio Humaitá,
recentemente foi escolhido pelos companheiros para integrar a direção do
Conselho de Sinceridade e Solidariedade (CSS). A função não é para qualquer um.
Só os considerados melhores chegam lá.
Formado por dezesseis recuperandos, o CSS cuida da
parte disciplinar do presídio, o que inclui arrumação das celas, limpeza das
áreas comuns, higiene pessoal e respeito pelos companheiros.
Na Apac, o preso sabe que tem muito a ganhar quando
se comporta de forma decente. A ideia é que um ajuda e é co-responsável pela
recuperação do outro. Quem sai da linha é cobrado.
Aliás, sair da linha não compensa: comportamento
conta pontos, por exemplo, na hora de o juiz definir a passagem do preso de um
regime para outro. O CSS é consultado, bonitinho.
"O melhor mesmo é a liberdade, não tem
dúvida", assegura José Demartino, 53, um ano de Apac. "Mas quando o
assunto é cadeia, não existe nada melhor que a Apac."
"Quando cheguei aqui, não sabia nem bater à
maquina. Agora, sou digitador e continuo estudando computação." Rogério
Aparecido Mariano, 26, três anos e pouco na Apac, sabe que tem ainda muito
tempo de prisão pela frente, mas não está a fim de ficar parado. Quer estar
preparado para quando sair.
É errado imaginar que os recuperandos estejam
felizes da vida por estarem presos. Prisão é sempre prisão, e um criminoso sabe
disso, sente isso. Mas que diferença, na Apac! Também e sobretudo no que diz
respeito aos resultados.
Voluntários – O método apaqueano faz questão de
integrar parentes e familiares dos recuperandos no processo de sua
"conversão" para a vida e o convívio social.
E se não bastasse essa força, há toda uma rede de
padrinhos, madrinhas e voluntários (são mais ou menos 150) envolvidos na tarefa
coletiva de garantir que o preso, além de pagar pelo crime que cometeu, tenha a
chance de se regenerar.
"Aqui, me sinto feliz. Sei que estou
trabalhando por uma causa boa." Mauro Kano, 30, professor de filosofia e
sociologia e suplente de vereador pelo PT, é um dos oito voluntários que
trabalham direto, e o dia todo, no Presídio Humaitá.
Pensado inicialmente para trabalhos de tipo mais
burocrático, Mauro foi aos poucos penetrando presídio adentro, se enturmando,
conversando com o pessoal. Fala mansa, sorriso fácil, não é só a militância
junto à Apac que o faz feliz: mandaram chamá-lo porque a noiva acaba de chegar.
Os dois vão ao cartório marcar o casamento.
E uma outra alegria: o casamento na igreja será
feito por um amigo daqueles: o bispo Pedro Casaldáliga, de São Félix do
Araguaia/MT, que já esteve por duas vezes visitando o presídio. A última vez,
no mês de outubro, passou de cela em cela, de preso em preso, de conversa em
conversa, de abraço em abraço. Deixou saudades. Disse que vai voltar.
Razões do sucesso – "Invertemos o processo: o
primeiro passo é que o preso se sinta gente. Você já imaginou um preso podendo
dizer isso: 'Aqui, eu me sinto gente?'"
O advogado Mário Ottoboni, 66, um dos fundadores da
Apac e seu atual presidente, é um dos grandes responsáveis por esse sonho ter
se tornado realidade.
"Começamos pela valorização do preso,
combatendo a ideia de que ele é um lixo, um imprestável, um inútil. Depois, é o
preso mesmo quem deve concluir que, com Deus, ele é mais forte, tem mais
chances."
Tem mais um lado em que o método apaqueano inovou,
segundo Ottoboni: "Antes, a gente imaginava que entendia de preso, de seus
problemas, angústias, conflitos. Depois, descobrimos que quem entende de preso
é o próprio preso".
Daí, uns dez anos atrás, nasceu a ideia de formar
grupos, cela por cela, para falar dos mais diferentes assuntos. É uma espécie
de terapia de grupo. O monitor acompanha, escuta, aprende. "Não é do
voluntário para o preso, e sim do preso para o voluntário."
Primeiro Mundo – São quatro as categorias ou grupos
de Apacs existentes em cerca de 140 localidades brasileiras e em países como
Argentina, Equador e Estados Unidos. Cada um desses grupos representa um nível
diferente de engajamento e aplicação do método dentro dos presídios.
No Grupo 1, o mais completo, estão os presídios de
São José dos Campos/SP e de Itaúnas/MG, onde a polícia foi dispensada e os
voluntários da Apac, com alguma verba oficial e muito esforço para arrancar
ajuda onde possível, assumiram todo o trabalho.
Na opinião de Ottoboni, o espírito do método
apaqueano é aplicável em qualquer presídio, de qualquer canto e em qualquer
país. Quanto às formas, pode variar.
Em Cuiabá (Brasil), Córdoba (Argentina), Guayaquil
e Quito (Equador), por exemplo, foi implantado o esquema do Grupo 2: a Apac
cuida dos pavilhões, internamente, deixando a administração e a segurança por
conta de outros.
E por falar em outros países, aqui está uma das
maiores tristezas de Ottoboni: "A Apac vai ganhando força no exterior, e
nós, aqui, não contamos com o devido apoio das autoridades brasileiras".
Ottoboni, que acaba de voltar das Filipinas, onde
participou de um encontro internacional sobre o tema das prisões, constata:
"Uns trinta países estão preparados para implantar a Apac em 1998, e nós
não temos condições de acompanhar".
Na Hungria, o governo mandou reproduzir um
documentário feito pela BBC de Londres no Presídio Humaitá, em 1995. Mil cópias
foram distribuídas por instituições interessadas de todo o país, e a Apac virou
tema obrigatório.
"Daqui a pouco, o método apaqueano vai acabar
sendo valorizado, no Brasil, porque pensarão que veio lá de fora, do Primeiro
Mundo", ironiza Ottoboni, com uma ponta de tristeza. "Não vão se dar
conta de que nasceu aqui, de que é coisa nossa", ele lamenta.
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Renata Carrara, jornalista, faz curso de
pós-graduação em Comunicação, tendo escolhido a Apac para tema de sua pesquisa.
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