sábado, 9 de fevereiro de 2013

Testemunho: "Apac e Prisão"


A sociedade sai ganhando

Em mais de uma centena de cidades brasileiras e inclusive do exterior, a Apac comprova que prisão não precisa ser barril de pólvora, inferno ou universidade do crime.

Renata Carrara
Imaginem uma cadeia sem armas, sem polícia e sem algemas, onde os presos cuidam de tudo: da limpeza, da disciplina, da parte burocrática, da enfermaria e – pasmem – da própria segurança. Onde dá para contar nos dedos o número de fugas que aconteceram em mais de vinte anos e onde nunca houve rebeliões.

Algum preso do regime fechado tem que ser levado ao juiz e precisa de escolta? Os presos do semi-aberto cuidam disso.

Pensem num presídio por onde o visitante pode andar livremente e sem medo, conversando com os presos, apertando suas mãos, perguntando de suas famílias. Onde uma capela foi montada numa antiga cela-forte – lembrança dos tempos em que ali funcionava uma "cadeia de verdade".

Esse lugar existe, e está situado bem ao lado da praça central de São José dos Campos/SP. O Presídio Modelo Humaitá é administrado pela Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (Apac), uma entidade de inspiração católica que encara a questão penitenciária de forma nova, até irreverente.

Visita ao presídio – Ali, a ideia é que a proteção da sociedade depende, e muito, da recuperação do preso, que é tratado pela Apac como gente, e não como fera enjaulada.

Márcio Luís Santos Neves, 20, condenado a cinco anos e quatro meses, é quem abre a porta que dá para a rua. Meio tímido, jeito de adolescente, ele cumpre pena no regime semi-aberto. Um preso tomando conta da chave da cadeia? Impossível!

A Apac não acha isso, assim como, para ela, Márcio não é um "preso". Ele e todos os outros que cumprem pena lá dentro são "recuperandos". Porque, de acordo com o pensamento da entidade, não existe ninguém irrecuperável.

Somando cerca de oitocentos no total, os recuperandos do Presídio Humaitá estão divididos entre o regime fechado (ou primeiro estágio), o semi-aberto (segundo estágio) e o aberto (terceiro estágio) – que exige apenas o comparecimento diário para assinatura do ponto.

Nada de anjinhos – Um corredor com três portas – a primeira delas é aberta também por Márcio – leva o visitante até onde se encontram os prisioneiros do regime fechado.

Aqui vivem homens que cometeram desde estelionatos até assaltos à mão armada, estupros, homicídios e tráfico de entorpecentes. Que ninguém imagine estar entrando numa ala reservada a anjos.

Sidney Roberto de Moraes, 37, condenado a cinco anos e oito meses, abre a segunda porta para a realidade que aguarda a repórter.

A seu lado, num reservado, está Fausto Jerônimo, 43, atendendo o telefone. Condenado a nove anos e dois meses, é auxiliar de plantonista e, como seu colega Sidney, não vê a hora de alcançar o regime semi-aberto, quando poderá deixar o presídio, só tendo que voltar à noite para dormir.
Fausto abre a terceira e última porta, ao lado da qual foi montada uma árvore de Natal, logo abaixo de um enorme mural que lembra ao visitante, por meio de números, o que a Apac tem conseguido realizar na vida de milhares de seres humanos em seus 25 anos de existência.
Estamos no regime fechado.

O que o leitor está imaginando agora? Um caos geral? Superlotação? Sujeira e fedor? Gritaria? Gente sem ter o que fazer, de cara feia, assustadora?

Imaginou errado.

Laborterapia – Corredores praticamente vazios, bem como as onze celas, com dez camas cada uma, tudo limpo de dar gosto. A maior parte dos recuperandos assiste a um documentário sobre drogas na sala de TV e vídeo, que tem lugar para 62 pessoas.

Do outro lado do edifício, na sala de laborterapia, onde os recuperandos recebem aulas de arte, Antônio Carlos de Almeida, 26, condenado a quatro anos, dá os retoques finais num navio de enfeite que acabou de montar.

Paciente na espera – terá direito a liberdade condicional assim que cumprir dois terços da pena –, paciente na lida dos instrumentos de sua arte, ele manuseia com habilidade... um estilete. Pelas mãos dos presos da Apac passam diariamente dezenas de estiletes e outros objetos cortantes, utilizados nas oficinas de arte e nos cursos profissionalizantes para cabeleireiro, letrista e estampagem de camisetas.

Algum problema? Nenhum.

Ali, na sala de laborterapia, funciona também o refeitório. Garfos e facas circulam livremente pelas mãos de todos, e a história de muitos anos ensina que o visitante não precisa ficar com medo de acolher o convite a se sentar à mesa, comer e conversar com os detentos.

Trabalho e educação – Preguiça e falta do que fazer não integram o dicionário da Apac. A ocupação em tempo integral é incentivada, porque faz parte do processo de recuperação do preso e o prepara para sua futura reinserção social.

Mas existe também um aspecto muito prático: de acordo com a Lei de Execução Penal (LEP), cada três dias de trabalho significam um dia a menos de prisão, o que, juridicamente, é chamado de "remição de pena".

O presídio recebe também professores para cursos de alfabetização e primeiro grau. Na Apac, todo preso que passa do regime fechado para o semi-aberto já fez do analfabetismo uma história de antigamente.

A LEP até que garante assistência educacional aos presos, mas esta, como muitas outras, é uma determinação que o deficiente sistema penitenciário não cumpre. Segundo dados do Censo Penitenciário Nacional/94, 87% dos presos não têm primeiro grau completo.

Do dia-a-dia apaqueano fazem também parte a oração, meditação, cânticos religiosos, palestras, etc. Na cartilha da Apac aprende-se que religião é fundamental.

Ninguém é obrigado a acreditar em Deus nem a ser católico (os evangélicos dispõem de um espaço próprio). Mas se insiste bastante naquilo que ensinou Jesus: "Sem mim, nada podeis".

Um ajuda o outro – Roberto Donizette de Carvalho, o Beto, 26, condenado a 25 anos de prisão, confessa que, na Apac, virou "um novo Beto".

Há dois anos e oito meses no Presídio Humaitá, recentemente foi escolhido pelos companheiros para integrar a direção do Conselho de Sinceridade e Solidariedade (CSS). A função não é para qualquer um. Só os considerados melhores chegam lá.

Formado por dezesseis recuperandos, o CSS cuida da parte disciplinar do presídio, o que inclui arrumação das celas, limpeza das áreas comuns, higiene pessoal e respeito pelos companheiros.
Na Apac, o preso sabe que tem muito a ganhar quando se comporta de forma decente. A ideia é que um ajuda e é co-responsável pela recuperação do outro. Quem sai da linha é cobrado.

Aliás, sair da linha não compensa: comportamento conta pontos, por exemplo, na hora de o juiz definir a passagem do preso de um regime para outro. O CSS é consultado, bonitinho.

"O melhor mesmo é a liberdade, não tem dúvida", assegura José Demartino, 53, um ano de Apac. "Mas quando o assunto é cadeia, não existe nada melhor que a Apac."

"Quando cheguei aqui, não sabia nem bater à maquina. Agora, sou digitador e continuo estudando computação." Rogério Aparecido Mariano, 26, três anos e pouco na Apac, sabe que tem ainda muito tempo de prisão pela frente, mas não está a fim de ficar parado. Quer estar preparado para quando sair.

É errado imaginar que os recuperandos estejam felizes da vida por estarem presos. Prisão é sempre prisão, e um criminoso sabe disso, sente isso. Mas que diferença, na Apac! Também e sobretudo no que diz respeito aos resultados.

Voluntários – O método apaqueano faz questão de integrar parentes e familiares dos recuperandos no processo de sua "conversão" para a vida e o convívio social.

E se não bastasse essa força, há toda uma rede de padrinhos, madrinhas e voluntários (são mais ou menos 150) envolvidos na tarefa coletiva de garantir que o preso, além de pagar pelo crime que cometeu, tenha a chance de se regenerar.

"Aqui, me sinto feliz. Sei que estou trabalhando por uma causa boa." Mauro Kano, 30, professor de filosofia e sociologia e suplente de vereador pelo PT, é um dos oito voluntários que trabalham direto, e o dia todo, no Presídio Humaitá.

Pensado inicialmente para trabalhos de tipo mais burocrático, Mauro foi aos poucos penetrando presídio adentro, se enturmando, conversando com o pessoal. Fala mansa, sorriso fácil, não é só a militância junto à Apac que o faz feliz: mandaram chamá-lo porque a noiva acaba de chegar. Os dois vão ao cartório marcar o casamento.

E uma outra alegria: o casamento na igreja será feito por um amigo daqueles: o bispo Pedro Casaldáliga, de São Félix do Araguaia/MT, que já esteve por duas vezes visitando o presídio. A última vez, no mês de outubro, passou de cela em cela, de preso em preso, de conversa em conversa, de abraço em abraço. Deixou saudades. Disse que vai voltar.

Razões do sucesso – "Invertemos o processo: o primeiro passo é que o preso se sinta gente. Você já imaginou um preso podendo dizer isso: 'Aqui, eu me sinto gente?'"

O advogado Mário Ottoboni, 66, um dos fundadores da Apac e seu atual presidente, é um dos grandes responsáveis por esse sonho ter se tornado realidade.

"Começamos pela valorização do preso, combatendo a ideia de que ele é um lixo, um imprestável, um inútil. Depois, é o preso mesmo quem deve concluir que, com Deus, ele é mais forte, tem mais chances."

Tem mais um lado em que o método apaqueano inovou, segundo Ottoboni: "Antes, a gente imaginava que entendia de preso, de seus problemas, angústias, conflitos. Depois, descobrimos que quem entende de preso é o próprio preso".

Daí, uns dez anos atrás, nasceu a ideia de formar grupos, cela por cela, para falar dos mais diferentes assuntos. É uma espécie de terapia de grupo. O monitor acompanha, escuta, aprende. "Não é do voluntário para o preso, e sim do preso para o voluntário."

Primeiro Mundo – São quatro as categorias ou grupos de Apacs existentes em cerca de 140 localidades brasileiras e em países como Argentina, Equador e Estados Unidos. Cada um desses grupos representa um nível diferente de engajamento e aplicação do método dentro dos presídios.

No Grupo 1, o mais completo, estão os presídios de São José dos Campos/SP e de Itaúnas/MG, onde a polícia foi dispensada e os voluntários da Apac, com alguma verba oficial e muito esforço para arrancar ajuda onde possível, assumiram todo o trabalho.

Na opinião de Ottoboni, o espírito do método apaqueano é aplicável em qualquer presídio, de qualquer canto e em qualquer país. Quanto às formas, pode variar.

Em Cuiabá (Brasil), Córdoba (Argentina), Guayaquil e Quito (Equador), por exemplo, foi implantado o esquema do Grupo 2: a Apac cuida dos pavilhões, internamente, deixando a administração e a segurança por conta de outros.

E por falar em outros países, aqui está uma das maiores tristezas de Ottoboni: "A Apac vai ganhando força no exterior, e nós, aqui, não contamos com o devido apoio das autoridades brasileiras".

Ottoboni, que acaba de voltar das Filipinas, onde participou de um encontro internacional sobre o tema das prisões, constata: "Uns trinta países estão preparados para implantar a Apac em 1998, e nós não temos condições de acompanhar".

Na Hungria, o governo mandou reproduzir um documentário feito pela BBC de Londres no Presídio Humaitá, em 1995. Mil cópias foram distribuídas por instituições interessadas de todo o país, e a Apac virou tema obrigatório.

"Daqui a pouco, o método apaqueano vai acabar sendo valorizado, no Brasil, porque pensarão que veio lá de fora, do Primeiro Mundo", ironiza Ottoboni, com uma ponta de tristeza. "Não vão se dar conta de que nasceu aqui, de que é coisa nossa", ele lamenta.
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Renata Carrara, jornalista, faz curso de pós-graduação em Comunicação, tendo escolhido a Apac para tema de sua pesquisa.

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