A PROPAGAÇÃO DA ATEÍSMO NO MUNDO
Disse o néscio no seu coração: Não há Deus"
(Salmo 14:1. ARC). O ateísmo é hoje uma realidade no mundo. Nenhum evangélico
deve ignorar ou ficar indiferente diante deste fato. Existe um movimento de
negação formal da existência de Deus, e é grande o número de pessoas que têm-se
deixado influenciar pela atitude dos que afirmam não acreditar na existência de
um Deus Criador do Universo, cujo Filho deu sua vida para salvar a humanidade.
Porém, desde já devemos reconhecer que o ateísmo, seja qual for a forma como
ele se apresente, é uma violência que o homem pratica contra sua própria
consciência, é uma tentativa de anulação e desconhecimento de todas as provas
da existência de Deus produzidas ao longo de toda a história humana.
Além do mais, sabe-se que até hoje nenhum ateu fez
uma demonstração racional que justificasse a "lógica" do seu ateísmo.
"O primeiro ateu deve ter sido um delinquente que procurava, negando a
Deus, livrar-se da única testemunha da qual ele não podia ocultar seu
crime", observou certa vez, com muita propriedade, o escritor italiano
Giovani Papine. O ateísmo tem-se constituído também em um princípio de dúvidas
para as pessoas que só acreditam que Deus existe baseadas nas clássicas
demonstrações de sua existência, mas ainda não foram introduzidas, pelo Sumo
Sacerdote e Salvador da humanidade, Jesus Cristo, no "Santo dos Santos,
onde Deus habita". Vejamos como e através de quem o movimento ateísta
popularizou-se no mundo moderno.
O ATEÍSMO,
DA ANTIGUIDADE AOS NOSSOS DIAS
No primeiro capítulo deste livro, vimos que jamais
foram encontrados povos ateus. Contudo, se examinarmos o pensamento dos grandes
homens da Antiguidade, descobriremos certas posições isoladas de filósofos que
afirmavam não acreditar na existência de Deus. Porém, devemos atentar para um
aspecto importante do ateísmo. Quando o ateu diz: "Deus não existe",
a que Deus ele estará negando? Ao verdadeiro Deus? Ele nega a existência de
Deus, seja qual for o modo como imagina-se que Deus seja, ou nega a existência
de um deus imaginado de uma certa maneira?
O escritor francês Jean Claude Barreau conta uma
experiência vivida por ele no período em que negar a existência de Deus era
moda na França, em decorrência da propagação da filosofia existencialista:
"Naquela época estavam representando no teatro a peça 'O Diabo e o Bom
Deus', de Jean Paul Sartre, peça que causava horror aos meus companheiros de
fé. Fui assisti-la e ela nem me atingiu. Era Baal, era Moloc que Sartre
denunciava. Não era meu Deus. Eu abominava o deus de Goetz (um dos personagens
da peça) tanto quanto Sartre."
E é Jean Claude que nos fornece a frase ideal para
ser usada como resposta a esses ateus equivocados: "Isto que você recusa
eu também não aceito, porque nada tem a ver com o Deus dos Evangelhos."
"Um dia o semblante do Deus dos Evangelhos me fascinou. E este semblante
que vi é bem distinto das ideias de Deus que muitas pessoas têm em mente. Este
retrato de Deus vai muito além das definições dogmáticas."
Alguns homens da Antiguidade, ao se posicionarem
como ateus, nem sempre estavam negando a existência do verdadeiro Deus, e sim
dos "deuses", por não concordarem com o politeísmo existente em seus
países. Foi o caso dos filósofos gregos Anaxágoras e Sócrates. Este último
chegou, inclusive, a ser julgado e condenado à morte sob a acusação de estar
corrompendo a juventude com ideias ímpias. Ou seja: Sócrates estava levando os
jovens a não acreditarem na existência dos deuses em que o povo grego
acreditava, os mesmos deuses a quem Paulo se referiu no seu discurso no
Areópago (Atos 17:22-25).
Ora, já naquela época, o célebre filósofo grego
Platão (427-348 a.C), discípulo de Sócrates, havia criticado a posição
ateística, dirigindo energicamente suas sábias palavras a um ateu:
Nem tu, nem teus companheiros sois os primeiros nem
os únicos que tendes semelhante opinião da Divindade, mas em todos os tempos,
ou mais, ou menos, sempre houve quem estivesse afetado dessa enfermidade.
Travei conhecimento com muitos deles, e por isso vos digo que nenhum dos que na
sua mocidade negou a existência de Deus manteve semelhante opinião até a
velhice. Aconselho-te, pois, agora, a não ousares cometer algum ato impiedoso
contra a Divindade. Antes de proferires uma palavra contra Deus, medita três e
dez vezes; porque chegará o dia (e chegará breve) em que o escárnio expirará em
teus lábios trêmulos; virá o dia em que precisarás de Deus e da sua eterna
verdade para a tua alma aflita, vazia e trespassada pela dor.2
Porém, o filósofo grego Epicuro e o poeta latino
Lucrécio (c. 99-55 a.C.) continuaram o trabalho de propagação das ideias
ateístas: afirmaram que tudo se origina da matéria existente no Universo. Para
eles o Universo sempre existiu, nunca foi criado. No seu famoso poema
materialista De Rerum Natura (Da Natureza), Lucrécio diz que nem Deus nem os
deuses existem. O mundo surgiu da união dos átomos. Mas se alguém lhe
perguntasse quem ou o que teria levado esses átomos a se unirem para formar o
mundo, Lucrécio responderia: "Foi o acaso". O interessante é que o
próprio escritor comunista francês Anatole France, após concluir ser absurdo
tentar explicar a existência do mundo como produto do acaso, comentou certa
vez: "Acaso é, talvez, o pseudônimo de Deus quando não desejava assinar o
nome".
OS JOVENS
SOB O PERIGO DO MATERIALISMO
As ideias dos filósofos ateus da Antiguidade
influenciaram a maioria dos pensadores franceses do século XVIII, e na segunda
metade do século XIX, uma perigosa onda de materialismo avançou pelas praias da
filosofia e da ciência, e afogou muitos no mar do ateísmo, alcançando seus maiores
efeitos no meio da mocidade estudiosa. Dois escritores alemães, Buchner e
Ernesto Haeckel, foram especialmente usados pelas forças invisíveis das trevas
que atuam no mundo, para semear a dúvida no coração dos estudantes europeus, e
levá-los a desacreditar da Bíblia. Buchner escreveu o livro Força e Matéria,
publicado em 1855. Traduzido em dezenas de idiomas, essa obra chegou a ser lida
por quase todos os jovens estudantes americanos e europeus daquela época.
Os Enigmas do Universo foi o título que Ernesto
Haeckel deu ao seu livro, lançado na Alemanha em 1863. Só em alemão essa obra
alcançou mais de 200 edições, sendo traduzida em todos os idiomas cultos da
época. Esses dois livros foram a grande preparação para o ateísmo que surgiria
como base do regime político adotado na Rússia no início do século seguinte.
Procurando dar para todos os fenômenos da Natureza uma explicação materialista,
apresentando soluções enganosas em nome da ciência (da falsa ciência, diga-se
de passagem), Haeckel conquistou a simpatia ingênua da mocidade,
proporcionando-lhe a ilusória satisfação de estar explicando os segredos do
universo sem necessitar de, em nenhum momento, recorrer a Deus.
Porém, décadas depois, as afirmações desse escritor
foram desmentidas pela própria ciência, e Haeckel ficou conhecido nos meios
científicos como um falsário. Mas ele foi muito lido e admirado também pelos
estudantes do Brasil.
Recapitulemos: para os materialistas, tudo é
matéria (não existe um mundo espiritual, não existe Deus), e tudo volta para a
matéria eterna. Viemos do nada e entraremos no nada pela morte. Não há outra
vida além desta, dizem eles. Soberbos, e achando que os conhecimentos
científicos que possuem os tornam donos da verdade, os materialistas afirmam
que os "homens cultos" já não acreditam hoje "nessas tolices de
Céu e de Inferno". A única coisa em que crêem é na religião da ciência.
Para eles o mundo surgiu sem a participação de Deus, desenvolveu-se sem Deus e
há de chegar à sua perfeição sem Deus.
Antigamente os intelectuais que negavam a
existência de Deus eram olhados como alguém à parte da sociedade. O ateísmo era
visto como uma atitude hiperintelectual, aristocrática, e por isso desprezada
pelo povo. Porém, no século XX essa situação mudou. Foi a grande estratégia de
Satanás! O ateísmo deixou de ser aristocrático para se tornar popular. Saiu do
domínio intelectual e passou a influenciar a existência de milhões de pessoas.
Diante de problemas como a fome, a guerra e as injustiças, muita gente tem
rejeitado Deus como alguém necessário para a solução desses problemas, e até
mesmo se negado a crer que ele exista.
O ATEÍSMO NA
UNIÃO SOVIÉTICA
Apoderando-se, em outubro de 1917, do governo da
antiga Rússia dos tzares, o Partido Comunista liderado porVladimir Ilitch
Ulianov (1870-1924), conhecido como Lênin, colocou em prática as ideias dos
filósofos alemães Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895), e
passou a controlar o regime e a situação no país pelo uso da violência,
caracterizando-se também pela intolerância religiosa. Conta-se que o pai de
Lênin, Ilia Nikolaievitsch Oulianof, acreditava na existência de Deus e se
comprazia em recitar as seguintes palavras do escritor
Nekrassof:"Apareceu-me sobre a colina a casa de Deus, e senti, de repente,
uma pureza de fé destilar-se da alma como um perfume.'
Mas Lênin confessava-se ateu desde a sua juventude.
O escritor Dostoievski comentara tempos atrás sobre o quanto era fácil os seus
compatriotas russos tornarem-se ateus! "E mais fácil que a qualquer outro
habitante do globo! E os nossos não se tornam apenas ateus: crêem no ateísmo
como se fosse uma nova religião, sem notarem que é crer no nada." Vários
anos antes da implantação do regime socialista na Rússia, Ivan Fedorovitch (um
dos personagens do romance Os Irmãos Karamazov, escrito por Dostoievski)
comentara:
Segundo o meu parecer, não se deve destruir nada,
senão a ideia de Deus no espírito do homem: é por aí que se tem de começar.
Logo que toda a humanidade tiver chegado a negar a Deus (e creio que a época do
ateísmo universal chegará, como uma época geológica), desaparecerão os antigos
sistemas e sobretudo a antiga moral. Os homens reunir-se-ão para pedir à vida
tudo o que ela pode dar, mas somente e absolutamente a esta vida presente e
terrestre. O espírito humano crescerá, elevar-se-á a um orgulho satânico, e
serão os tempos do deus-humanidade.7
ATEUS
RECONHECEM A EXISTÊNCIA DE DEUS
Porém, apesar de todas as posições radicais,
conta-se que durante a revolução russa, quando a cidade de Petersburg foi
rodeada pelo general Kornilov e suas tropas anti-comunistas, Lenin repetiu
várias vezes, durante um discurso, a expressão: "Dai Boje", que
significa: "Permita Deus escaparmos.' Vários outros episódios envolvendo
autoridades comunistas da Rússia mostram que o povo russo é tão desejoso de
Deus quanto qualquer outro povo sobre a face da Terra. Antes da invasão russa
do Norte da África, o próprio Stalin disse várias vezes: "Que Deus nos dê
êxito na operação Torch." Costumava dizer também que "o passado
pertence a Deus".
O Ministro do Interior dos Negócios Soviéticos,
Iagoda, ao saber que fora condenado à morte por Stalin, disse: "Deve
existir um Deus, porque meus pecados me alcançaram." No seu leito de
morte, o presidente da Liga dos Ateus na Rússia, Iaroslavski, pediu insistentemente
a Stalin: "Queima todos os meus livros! Veja, ele está aqui! Ele
esperou-me. Queima todos os meus livros!"
Atacando inicialmente o catolicismo soviético, o
Partido Comunista concentrou depois sua campanha ateísta contra toda e qualquer
manifestação religiosa dentro do território russo. O objetivo principal era
esmagar de uma vez por todas a ideia da existência de Deus, arrancar a fé em
Deus do coração do povo como quem extirpa um tumor maligno, e bani-la para
sempre da Rússia e dos demais países comunistas. As seguintes palavras,
escritas em 1993 por um membro do partido dos ateus militantes, mostram bem a
que grau havia chegado a perseguição religiosa naquele país:
Devemos agir de maneira que cada golpe vibrado
contra o clero ataque a religião em geral... Ainda os mais cegos veem até que
ponto se torna indispensável a luta decisiva contra o eclesiástico, quer se
chame pastor, abade, rabino, patriarca, mula ou papa; essa luta deve
desenvolver-se também e inelutavelmente contra Deus, quer se chame Jeová, Jesus,
Buda ou Alá.13
Tendo sido definida pelo filósofo Karl Marx como o
ópio do povo, a religião teve entre os comunistas os seus dias contados. O
escritor evangélico russo Richard Wurmbrand, no seu livro A Resposta à Bíblia
de Moscou, fez sobre isso o seguinte comentário:
Em setembro de 1932, uma revista de Moscou,
Molodaia Guardiã (Vanguarda Jovem) anunciou que, de acordo com o plano
ateístico de cinco anos, até 1937 toda manifestação religiosa deveria ser
definitivamente destruída e a Palavra de Deus silenciada para sempre. Isto
porém não aconteceu. O cristianismo está prosperando em muitos países
comunistas, mesmo sob interdição e ameaça de perseguição. Por quê?14
Todavia, e para alegria da comunidade evangélica
mundial, o problema do ateísmo na Rússia sofreu impactantes mudanças após a
queda do muro de Berlim e a fragmentação da antiga União Soviética. Fortíssimos
ventos anunciadores da verdade bíblica e proclamadores da existência de Deus
têm penetrado pelos rasgões existentes na chamada Cortina de Ferro. Agora a
existência de Deus passou a ser assunto do dia-a-dia em milhares de lares
russos.
UMA VIDA SEM
ESPERÂNÇA EM OUTRA VIDA
Não há situação mais triste, mais digna de
compaixão do que a de uma pessoa que vive tão-somente o hoje, o agora, levando
dentro de si a convicção do aniquilamento total após a morte. Há — somos
forçados a reconhecer — uma grandeza tragicamente sinistra neste avançar do
ateu fria e conscientemente para o Nada. Enquanto a morte daquele que aceitou a
Cristo como seu Salvador e lhe foi fiel é iluminada pela esperança da vida
eterna e da ressurreição final, bem diferente é a morte do ateu, do "herói
vermelho" que morre sem nenhuma esperança no Amanhã. O filósofo inglês
Bertrand Russel, confessadamente ateu, no seu livro Porque não Sou Cristão,
traçou, com as seguintes palavras, o perfil psicológico de centenas de milhões
de pessoas que, como ele (Russel já faleceu), tentam parecer serenas,
conformadas e felizes ao marcharem para a morte, convictas de que ela as
aniquilará totalmente:
Acredito que, quando morrer, apodrecerei, e que
nada do meu eu sobreviverá. Não sou jovem e amo a vida. Mas desdenharei tremer
de terror ante a ideia do aniquilamento. A felicidade não é menos felicidade
nem menos verdadeira por ter de chegar a um fim; tampouco o pensamento e o amor
perdem o seu valor por não serem eternos.15
Mais amargo, trágico e dolorosamente nítido foi o
autoperfil ateísta-materialista traçado pelo poeta brasileiro Manuel Bandeira
no poema A Morte Absoluta:
Morrer.
Morrer de corpo e de alma.
Completamente.
Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
A exangue máscara de cera,
Cercada de flores,
Que apodrecerão — felizes! — num dia,
Banhadas de lágrimas
Nascidas menos da saudade do que do espanto da
morte.
Morrer sem deixar porventura uma alma errante...
A caminho do céu?
Mas que céu poderá satisfazer teu sonho de céu?
Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
A lembrança de uma sombra
Em nenhum coração, em nenhum pensamento,
Em nenhuma epiderme.
Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: "Quem foi?..."
Morrer mais completamente ainda
— Sem deixar sequer esse nome.16
E AGORA,
DRUMMOND?
E por falar em poeta, Carlos Drummond de Andrade, o
maior poeta brasileiro de todos os tempos, partiu para a eternidade sem crer na
existência de Deus. E toda a sua poesia se ressentiu desse seu posicionamento.
(Acreditamos que um rápido estudo do perfil literário-filosófico de Drummond —
um dos maiores expoentes da cultura moderna na América Latina — fornecerá
elementos aos estudiosos do comportamento religioso da maioria dos intelectuais
latino-americanos).
Tendo nascido no início deste século (1902) em uma
das muitas cidades mineiras enraizadas no catolicismo, o menino Drummond
estudou em estabelecimentos de ensino dirigidos por padres, mas sua obra revela
que esse seu contato com pedagogos e sacerdotes católicos não lhe proporcionou
respostas para as futuras perguntas que o jovem poeta faria, e não o aproximou
de Deus.
Entre os temas que alicerçam o imenso edifício
poético deixado por ele — a vida, o amor, a morte, o homem perdido nas grandes
cidades, sua infância em Minas, a angústia, o eterno adeus de parentes e
amigos, sua luta com as palavras, o difícil ofício de existir —, nota-se a
ausência de temas ligados à alma, à vida eterna, a Deus. Certa vez, durante uma
entrevista, Drummond definiu sua posição diante desses assuntos:
Eu tenho um pensamento tranquilo a respeito das
coisas sobrenaturais. Eu sou — parece pretensioso — agnóstico, aquela pessoa
que não tem argumento nem para negar Deus nem para crer. Não é posição de
mineiro, é visão filosófica antiquíssima. Como não consegui achar uma solução
para este problema, para que me atazanar com isto?
VIVER POR
TEIMOSIA
Mas esse aparente desdém, esse dar de ombros, essa
suposta indiferença com relação a Deus tinha raízes que se lançavam no poço de
Mara (de águas amargosas — Êxodo 15:23) de onde fluiu o tom de resignação e
amargura que revestiu grande parte dos poemas produzidos por ele em sua
maturidade e velhice. Já no seu primeiro livro, publicado em 1930, Drummond,
jovem de 28 anos, mostrava o que tinha sido sua vida até ali: uma tentativa de
mostrar-se superior às vicissitudes existenciais. Mas o jovem poeta não pôde
esconder o sentimento de orfandade e vazio que ia dentro de sua alma, e acusou
Deus de o ter abandonado:
O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.
Meu Deus, porque me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco?17
O gradativo distanciamento da grande questão que
divide a humanidade e define o nosso destino eterno — a crença ou descrença na
existência de Deus — foi delineando pouco a pouco o rumo que tomou a poesia do
autor de Sentimento do Mundo: Uma poesia de resignação e lucidez, de análise
terrivelmente amarga, existencialista (o mais genuíno existencialismo à Jean
Paul Sartre) da condição humana. Para Drummond, o homem é um ser órfão,
entregue à sua própria sorte, e terá que viver por imposição ou teimosia:
O amor não nos explica. E nada basta,
nada é de natureza assim tão casta
que não macule ou perca a sua essência
ao contato furioso da existência.
Nem existir é mais que um exercício
de pesquisar da vida um vago indício,
a provar a nós mesmos que, vivendo,
estamos para doer, estamos doendo.
(O Relógio do Rosário, 1951)
JOSÉ É
QUALQUER HOMEM DO MUNDO
Um dos pontos mais altos na poesia de Drummond é o
poema José:
E agora, José?
A festa acabou
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?
"E agora José" tornou-se a frase
conotativa da situação de perplexidade e desespero em que subitamente mergulham
os seres humanos que jamais tiveram um encontro pessoal de salvação com Aquele
que disse: "Vinde a mim todos os que estais cansados e sobrecarregados, e
eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, porque sou
manso e humilde de coração, e encontrareis descanso para as vossas almas. Pois
o meu jugo é suave e o meu fardo é leve" (Mateus 11:28-30).
Além de ter sido um dos quatro maiores poetas da
América Latina (só o nicaraguense Rubem Dario, o chileno Pablo Neruda e o
argentino Jorge Luis Borges tiveram envergadura literária tão grande como a
sua), Drummond tornou-se o grande analista do ser humano que dispõe de inúmeros
recursos modernos, mas de repente percebe que isto de nada lhe vale quando vem
a angústia, quando, mesmo vivendo em uma cidade superpopulosa, a solidão e a
tristeza são suas companheiras de sempre. José é o próprio Drummond, são todos
os homens sem Jesus e esperança de salvação, perdidos nas pequenas e grandes
cidades, distantes da graça de Deus:
Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?
(José, 1942)
O poeta cresceu na sua poesia, ampliou seu
horizonte temático, universalizou-se, mas sempre procurou manter-se afastado
daquele que seria o Caminho, a Solução, a Porta de salvação para o seu José e
para ele mesmo, Drummond: Jesus! Entre o poeta e Deus havia uma pedra no meio
do caminho. Mas não foi Deus quem colocou essa pedra. Foi o próprio Drummond. E
ele fazia questão de frisar que tudo estava muito bem assim:
Sinceramente, sou uma pessoa terrivelmente
corajosa, porque não espero nada de coisa nenhuma. Não tenho religião, não
tenho partido político. Vivo em paz com meu critério moral. Vivo em paz com a
minha consciência.
SERENAMENTE
FIEL A SUA INCREDULIDADE
Ao declarar isto à imprensa, já com 80 anos de
idade, Drummond mostrou que durante todos aqueles anos permanecera o mesmo
poeta que escrevera o poema Coisa Miserável, em 1934. Sua opinião sobre Deus
permanecera a mesma:
Coisa miserável,
suspiro de angústia
enchendo o espaço,
vontade de chorar,
coisa miserável,
miserável.
Senhor, piedade de mim,
olhos misericordiosos
pousando nos meus,
braços divinos cingindo meu peito,
coisa miserável no pó sem consolo,
consolai-me.
Mas de nada vale gemer ou chorar,
de nada vale
erguer mãos e olhos
para um céu tão longe,
para um deus tão longe
ou, quem sabe?, para um céu vazio.
E melhor sorrir
(sorrir gravemente)
e ficar calado
e ficar fechado
entre duas paredes,
sem a mais leve cólera
ou humilhação.
No Poema da Necessidade (1940), Drummond reconhece:
E preciso crer em Deus, mas resolveu manter-se fiel ao seu posicionamento
agnóstico, ao seu triste estado de orfandade e resignação. Órfão de Deus, em
toda a sua plenitude:
Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Por que o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
Es todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos
edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
preferiram (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.
(Os ombros suportam o mundo, 1940)
O POETA
DIANTE DA MORTE
Drummond jamais aceitou o fato de sua filha, Maria
Julieta, ter morrido antes dele. Achou que isso fora uma injustiça. Amava
profundamente a filha — esse amor, a simples existência desse amor foi, durante
todo o tempo, uma eloquente prova da existência de Deus; mas essa prova
resultou inútil ao coração do poeta —, e logo após o sepultamento de Maria
Julieta, Drummond pediu à cardiologista que o tratava que lhe receitasse
"um enfarte fulminante". Anos antes, eleja definira sua atitude
diante da morte:
Aceito a ideia da morte. Como não tenho religião,
não vou pedir a Deus para prolongar a minha vida, para me dar uma morte serena.
Aceito a minha sorte. Não adiantaria ficar choramingando quero viver, quero
viver. Só quero morrer tranquilo comigo mesmo. Eu me desejo uma boa morte.
E foi em um completo estado de rejeição a Deus que
o poeta partiu para a eternidade. Teve Drummond uma boa morte?
O ATEÍSMO NA
FILOSOFIA EXISTÊNCIALISTA
Desde os tempos do filósofo francês Blaise Pascal
(1623-1662): "O homem está condenado a fugir de si mesmo, porque assim
escapa da miséria e do pensamento da morte", dizia Pascal —, um fluxo de
pensamento carregado de pessimismo quanto à condição do ser humano no mundo e
diante da vida passou a influenciar a humanidade. Eram as primeiras
manifestações da filosofia existencialista, que teve como fundador o filósofo e
escritor dinamarquês Soren Kierkegaard (1813-1855). Tanto Pascal como
Kierkegaard (este último, filho de pais luteranos) acreditavam na existência de
Deus, e até se confessavam cristãos. Daí o motivo de distinguir-se hoje duas
correntes na filosofia existencialista: o existencialismo cristão e o
existencialismo ateu, cujo principal representante é o filosofo francês Jean
Paul Sartre (1905-1980). Enquanto em suas profundas análises da angústia, da
solidão e do destino, Kierkegaard coloca o homem diante de Deus e da
eternidade, Sartre diz que o homem é "uma paixão inútil", está
entregue à sua própria sorte, e é o único responsável pelo seu destino. "O
homem será aquilo que ele houver resolvido ser", dizia Sartre.
Logo após o término da Segunda Guerra Mundial, o
existencialismo encontrou terreno fértil e propagou-se entre as pessoas
desesperançadas e inimigas de Deus. Como campeão do ateísmo, Sartre foi o
grande responsável por essa propagação. Para constatar isso, basta ler sua obra
filosófica e literária, toda ela dirigida contra Deus. Os existencialistas
afirmam que o homem está no mundo para nada. E um ser estupidamente destinado à
morte, "uma paixão inútil", segundo a conhecida frase de Sartre. Eles
não admitem sequer falar no nome de Deus, e não se ocupam em negá-lo de forma
expressa; simplesmente o ignoram.
O existencialismo é, portanto, a mais radical
posição de ateísmo existente atualmente no mundo, pois afirma que o homem está
no mundo inutilmente, independente de tudo o que consiga realizar. Ele é
incapaz de saber qual foi sua verdadeira origem, mas assim mesmo insiste em
existir sem finalidade alguma, levando dentro de si o selo de uma maldição: o
nada para onde voltará.
BIBLIOGRAFIA
1. Jean Claude Barreau. Op. Cit. pp. 9-11.
2. Citado por José Agostinho de Macedo, no livro
homônimo do de Fénelon, Demonstração da Existência de Deus. Lisboa, Imprensa
Regia, 1816, p. 34.
3. Tito Lucrécio Caro. Da Natureza. Tradução e
notas de Agostinho da Silva. São Paulo, Abril Cultural, 1980, Livro II,
parágrafos 645-650, e 1090-1095.
4. Ludwig Büchner. Force et Matiére. Etudes
populaires d'histoire et de Philosophie naturelles... 5ê edição, Paris, C.
Reinwlad, 1876, 385 pp.
5. Ernest Henrich Haeckel. Les Enigmes deVUniverse.
Trad. do alemão por Camille Bos. Paris. Schleicher fréres, 1902, 460 pp.
6. As citações de número 6, 8 a 12 e 14 foram
extraídas do
livro de Richard Wurbrand, A Resposta à Bíblia de
Moscou, cuja leitura recomendamos em especial. Após lermos esse livro e
fazermos algumas anotações em fichas, nós o perdemos e não pudemos localizar
outro exemplar. Daí a razão de não citarmos as páginas onde se encontram as
respectivas frases utilizadas aqui.
7. Fiódor Dostoievski. Os Irmãos Karamazov.
Tradução de Natália Nunes e Oscar Mendes. São Paulo, Abril Cultural, 1970,
Livro V, capítulo V.
8 a 12: Apud Richard Wurbrand. A Resposta à Bíblia
de Moscou.
13. Jacques Bivort de Ia Saudée. Ensaio de Suma
Católica Contra os Sem-Deus. Tradução de P. Lacroix. Rio de Janei¬ro, José
Olympio Editora, 1939, p. 468.
14. Ibdem. Richard Wurbrand. Op. Cit.
15. Bertrand Russel. Porque Não Sou Cristão.
Tradução de Brenno Silveira. São Paulo. Livraria Exposição do Livro, 1960, p.
24.
16. Manuel Bandeira. Estrela da Vida Inteira
(Poesias Reunidas). 8S edição. Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora,
1980, pp. 148, 149.
17. Este e os demais poemas de Drummond foram citados
tomando-se como base o livro Poesia Completa e Prosa. Rio de Janeiro, Editora
Nova Aguillar S.A., 1977, 1315 páginas.
Fonte:
"Provas da Existência de Deus"; Jefferson
Magno Costa; editora Vida; pg.55-69.
Não existem deus ou deuses
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