Duas Colunas
Duas colunas distinguiam a Igreja cristã primitiva
de qualquer outro sistema religioso. A primeira dizia respeito ao fundamental problema
da autoridade. Em tal Igreja só existia uma autoridade final: a Bíblia, a
Sagrada Escritura. Isto se depreende claramente dos ensinamentos de Jesus, de
Paulo e da totalidade do Novo Testamento. Entre os leitores do presente
tratado, muitos crerão que a Igreja primitiva estava certa em sustentar este
conceito da Escritura; porém, até mesmo aqueles que não o aceitam, deveriam
compreender que tal foi o conceito da Igreja, para assim entender
intelectualmente a mesma.
Os primeiros cristãos criam que a Sagrada Escritura
lhes dava uma autoridade externa ao âmbito do relativista, mutável e limitado
pensamento humano. Assim, com esta visão da Palavra, tinham o que consideravam
uma autoridade não humanista.
A outra coluna da Igreja primitiva que a diferenciava
de todos os demais sistemas religiosos era sua resposta à pergunta: Como se
achegar a Deus? Se Deus existe e é santo, perfeitamente santo, vivemos num
universo moral. Se Deus não existe ou se é amoral ou imperfeito, vivemos, consequentemente,
num universo relativo com relação à moral. Por outro lado, se Deus é perfeito,
e mantém sua total perfeição, então, como é óbvio que nenhum homem é moralmente
perfeito, todos eles estarão condenados. A única coisa que poderia resolver
este dilema, verdadeiramente básico, acerca de se o universo é moral ou amoral,
seria o ensinamento da Bíblia e da Igreja primitiva. Tal ensinamento foi que
Deus nunca diminuiu o nível de Suas normas, que Ele exige perfeição e que,
portanto, Ele é completamente moral; e que, porém, por causa do amor de Deus,
veio Jesus Cristo como Salvador, e realizou uma obra infinita e definitiva na
cruz, de maneira que o homem já pode se achegar ao Deus totalmente santo e
perfeito, apoiado nesta obra perfeita e consumada, pela fé e sem obras humanas
relativas. Estamos tão acostumados a falar disto dentro de um contexto
religioso, que esquecemos das implicações intelectuais. Diremos de novo que,
tanto se se crê no que a Igreja primitiva e a Bíblia ensinaram, como se não se
crê, deve-se entender este ponto que estamos tratando, ou não se poderá
compreender a tal Igreja, nem seu caráter distintivo.
Uma vez que se ensina a exigência por parte de Deus
de perfeição total, se mantém a existência de um universo moral; e ao se
ensinar a obra perfeita do Salvador, segue-se que não necessariamente todos os
homens sejam condenados. Assim, qualquer elemento humanista e egoísta é
destruído. Até mesmo se o cristianismo não fosse verdade, e nós cremos que ele
o seja, esta seria uma resposta titânica; jamais nenhum outro sistema — seja
religioso, seja filosófico — deu semelhante resposta.
Assim, pois, as duas colunas distintivas da Igreja
primitiva eram um golpe combinado e completo contra o humanismo. A autoridade
ficava fora da mutável jurisdição humana e assim, o acesso pessoal de cada
indivíduo ao Deus eternamente santo se baseava, não nos atos morais ou
religiosos relativos do homem, mas na absoluta e definitiva obra (e por ser Ele
Deus, infinita) de Jesus Cristo. Tudo isto fazia que o homem fosse arrancado do
centro do universo, donde havia intentado situar a si mesmo, quando se rebelou
contra Deus na histórica queda no Éden, e destruía o humanismo, atacando-lhe no
seu próprio coração.
Uma mudança
Uma mudança apareceu nos tempo do imperador
Constantino. Este fez paz com a Igreja, porém, começou a se intrometer nela.
Esta mudança de direção progrediu lentamente no princípio, e logo com crescente
velocidade. Tendo começado com Constantino, foi orientada em sua direção
definitiva na época de Gregório o Grande; e não com respeito a questões
incidentais, mas ao conceito básico. Tal mudança de direção destruiu as duas
únicas colunas, as quais referimos mais acima. A Igreja viria a ser o centro da
autoridade, no lugar da Palavra de Deus. Aqui é re-introduzido o elemento humanista.
Com relação à segunda coluna, é agora afirmado que a salvação, em vez de
descansar somente sobre a completa obra de Cristo — isto é, sua obra consumada
no espaço e no tempo, na história — se sustenta também nas obras humanas. No
sistema católico-romano, estas obras se acham em três importantes âmbitos. O
primeiro é o da missa. Não se considera já, na missa católico-romana, que Jesus
Cristo consumou Sua obra no espaço de tempo histórico em que morreu na cruz,
mas que Jesus Cristo está sofrendo constantemente. Ele sofre de novo, no
sacrifício não sangrento, cada vez que se celebra uma missa. Porém há mais
ainda: considera-se que aqueles que participam da missa estão oferecendo a
Cristo em sentido ativo. Basta ler o missal católico-romano para dar-se conta
da força disto. Cristo é oferecido pelo oficiante, porém quem participa da
missa participa em seu oferecimento ativo de Cristo.
Achamos o segundo elemento humanista no âmbito da
penitência. Esta é o sofrimento na vida atual, seja religioso, seja de uma maneira
geral, para compensar a ausência de boas obras positivas. Assim, o sofrimento
tem valor prático.
O terceiro elemento humanista diz respeito ao
âmbito do purgatório, no qual o valor do sofrimento se projeta para o futuro.
Sofre-se até merecer o mérito de Cristo.
Claro está, que desta maneira se destroem
totalmente as duas colunas básicas da Igreja primitiva, e assim encontramos no
sistema católico-romano um retorno ao que está especificamente relacionado com
os demais sistemas humanistas.
Os críticos
da arte
Os críticos da arte, literatura, etc., entendem
estas coisas e as expõem com notável clareza. Numa publicação de Skira sobre
Botticelli, Giulio Carlo Argan, italiano, crítico de arte, escreve: “O fato é
que, certamente, nos planos políticos e religiosos havia um grande futuro para
este sincretismo da arte e da cultura, uma vez que aquele havia sido
incorporado ao programa humanista progressivamente estabelecido pela Igreja
depois do sério Cisma do Ocidente (1378-1417), já que esse programa facilitava,
no final das contas, numa justificação histórica da fé cristã, admitindo a
Antiguidade clássica como sua e mostrando-a arrogantemente como a filosofia
natural do homem, o prelúdio providencial à revelação da verdade absoluta por
Jesus Cristo. Porém esta grandiosa, sistemática síntese de história, natureza e
fé, que iria constituir a base ideológica do classicismo de Rafael...” No
exposto, Argon resume e explica o humanismo básico da Igreja Católica Romana.
Notem-se três coisas:
I. — Ele diz que se trata de um programa humanista.
II.— Diz que a justificação histórica da fé cristã
— justificação ante aqueles que representam a cultura humanista em volta, ante
os homens que estão fora da Igreja —, foi proporcionada por uma síntese
sistemática.
III.— Destaca que com esta síntese, traça-se uma
linha ininterrupta entre a Antiguidade e a verdade revelada em Jesus Cristo.
Tudo está escrito, certamente, numa História de
Arte, e desde o ponto de vista da arte; porém, o que disse o autor é verdade de
modo geral. O catolicismo romano constitui um intento de síntese entre as
noções humanistas em volta e as não humanistas da Escritura.
A pintura do Renascentismo deixa isto sumamente
claro. Rafael planejava pintar quatro habitações no Vaticano. Pintou duas, e
seus discípulos as outras duas. Um das habitações pintadas pelo próprio Rafael,
nos proporciona uma claríssima prova do que descreve Argan como “a base
ideológica do classicismo de Rafael”. Numa parede desta habitação pintou a
Igreja, tal como a via em sua forma católico-romana, e na oposta, “A Escola de
Atenas”. Isto não foi por casualidade, já que o fez assim de propósito.
Trata-se de uma expressão artística do intento católico-romano de síntese entre
a filosofia humanista, e a não humanista da Palavra de Deus.
No tempo em que Rafael trabalhava no Vaticano,
Miguel Ângelo pintava a Capela Sixtina. Devem-se considerar os aspectos de sua
obra na mesma. Primeiro, as pinturas do teto; logo, as da parede do fundo.
No abobadado teto pintou uma séria de figuras
colocadas de uma forma que dava a impressão de sustentar a seção central do
mesmo. Estas figuras correspondem alternativamente a um homem e uma mulher.
Colocou o nome correspondente debaixo de todas elas, de modo que não pode haver
equívoco com relação ao que estava dizendo. Os homens representam os profetas
do Antigo Testamento. As mulheres, as antigas sibilas. Colocou a todos
alternativamente como iguais. Eis aqui sua maneira de dizer o que dizia Rafael
com suas pinturas do Vaticano. Na abóbada assim sustentada, achamos a
representação pictórica do cristianismo.
Assim, Miguel Ângelo entende e expõe claramente
como em seu tempo a Igreja Católica Romana se esforçava para realizar a síntese
entre o antigo humanismo e o cristianismo bíblico.
A pintura da parede do fundo da Sixtina nos diz a
mesma coisa. Representa o Juízo Final, e quando se contempla pela primeira vez,
pensa-se que, exceto pelo lugar central de Maria, é uma cena bíblica. Porém,
logo se observa a existência de um pequeno barco na parte inferior direita, e
se adverte que nos achamos diante do barco no qual os mortos eram conduzidos
através da lagoa Estigia, segundo a mitologia pagã. A pessoa então, se dá conta
que a cena não procede da Bíblia, mas de Dante, que já trabalho sobre a base da
mencionada síntese.
O teólogo
mais importante
O teólogo mais importante da Igreja Católica Romana
é Tomás de Aquino. A leitura de sua Summa manifesta claramente a ênfase na
mencionada síntese. Assim, o que vimos dizendo não é desconhecido na
apresentação da própria Igreja Católica Romana. Tanto em sua arte, como em sua
teologia, o catolicismo romano está edificado específica e centralmente sobre o
intento de síntese entre os pensamentos humanista e bíblico.
Este elemento humanista do catolicismo romano
explica o desenvolvimento da mariologia. Maria representa o mesmo. Tu, homem,
individualmente não alcanças a vitória porém, Maria, sim, Maria, venceu. E,
deste modo, temos um triunfo vicário do homem. Do mesmo modo, os santos
católico-romanos representam também uma humanidade vicária, vitoriosa. O homem
triunfou.
Seguindo a atual ênfase comum, que intenta apagar
as diferenças entre as diversas religiões, se diz frequentemente, inclusive por
evangélicos, porém afetados por esta tendência, que o catolicismo romano adora
ao menos, com toda segurança, ao mesmo Deus que a Igreja primitiva e a Reforma.
Desgraçadamente, a resposta é: não. O catolicismo romano não adora ao mesmo
Deus. A entrada do elemento humanista no sistema católico fez com que Deus seja
considerado como um Deus distinto do apresentado na Bíblia. O Deus bíblico é
inteiramente santo. Ele não pode aceitar nem a menor imperfeição moral. Se o
Deus totalmente santo quiser tratar com algum homem, depois da rebelião deste,
sobre qualquer elemento da obra moral humana, só poderia condená-lo. Por isso,
no sistema bíblico, Deus permanece inteiramente santo, e nós vivemos num
universo absolutamente moral. No sistema católico-romano, Deus não é totalmente
santo, já que aceita a imperfeição. Tal sistema afirma que somos salvos pelo mérito
de Jesus Cristo, porém introduzindo o elemento humanista, porque o homem deve
merecer o mérito de Jesus Cristo. A saída definitiva do purgatório se baseia no
merecimento. Este se obtém: 1) Pelas boas obras nesta vida, tanto religiosas
como morais; 2) pelo valor dos sofrimentos experimentados na vida presente, que
compensam o que faltou com relação às boas obras; 3) pelo valor do sofrimento
que se experimenta no purgatório, o qual compensa o que faltou nos sofrimentos
da vida na terra. Quando se tem alcançado isto, o mérito de Cristo é merecido.
Tudo isso significa que o homem triunfou. Porém, quer dizer também que se adora
a um Deus que não é completamente santo. Desde o ponto de vista bíblico tudo
isso é, naturalmente, trágico; porém, para alcançar uma compreensão intelectual
disso, deve-se entender também que significa que o cristianismo bíblico conduz
finalmente, na realidade, a um Deus humanista, não absoluto. Com pesar, porém
com uma finalidade definida, deve-se entender e afirmar que o Deus do sistema
católico-romano não é o da Sagrada Escritura. Esse Deus é imperfeito; e o
universo não é, portanto, absolutamente moral.
Nada novo
A Reforma não reconheceu nem ensinou nada novo.
Isto é, nada novo em referência ao ensinamento da Igreja primitiva. A Reforma
voltou simplesmente às duas colunas básicas a que nos referimos mais acima. A
Palavra de Deus era a única autoridade, e a salvação tinha como base única a
obra definitiva do Senhor Jesus Cristo, consumada na cruz. Tudo isso
significava a remoção dos elementos humanistas. A Reforma foi revolucionária
porque se apartou tanto do humanismo católico-romano, como do secular.
Para entender o que sucedeu depois, deve-se ter em
conta que, há uns 250 anos atrás, o humanismo tinha se introduzido na Alemanha,
e desta vez nas igrejas que haviam surgido da própria Reforma. Isto foi o
nascimento do que na atualidade se chama usualmente liberalismo ou modernismo
protestante. A alta crítica alemã e tudo quanto brotou dela até nossa geração,
é simplesmente a entrada do pensamento humanista na Igreja protestante depois
da Reforma, exatamente como, desde a época de Constantino em diante, o
humanismo entrou na corrente da Igreja primitiva. Nunca se enfatizará
suficientemente que a alta crítica não sobreveio porque certos fatos a fizeram
necessária, mas porque a filosofia humanista sobreveio primeiro. Aceitou-se em
primeiro lugar a filosofia humanista, e logo foram adicionados “fatos” que
pareciam poder prover uma base conforme a perspectiva humanista. A alta crítica
não foi a causa, mas o resultado. Os teólogos protestantes de tal época
permitiram a entrada do conceito humanista na Igreja protestante. As duas
colunas básicas não humanistas da Igreja foram destruídas de novo. O que
devemos entender agora é que, na nossa própria geração, tanto o humanismo do
sistema católico-romano como o do protestantismo liberal não diminui, mas que é
cada vez mais forte em ambos.
Talvez a
maior revolução
Talvez a maior revolução de nossa geração seja a
mudança acontecida no catolicismo romano. Alguns podem dizer que na realidade
não houve mudança, e que tudo isso é somente um estratagema; porém, seria
difícil estar completamente seguro de se efetivamente é esse o caso. O aumento
do humanismo na Igreja Católica Romana, em nossa geração, se mostra nos dois
âmbitos.
Em primeiro lugar, é um fato que até mui poucos
anos atrás Roma havia insistido que os três primeiros capítulos de Gênesis
deveriam ser interpretados literalmente. Hoje em dia, quando os científicos
católico-romanos se reúnem com os seculares, isto é deixado de lado. Estes
homens da ciência romano-católicos não são seculares, mas membros das diversas
ordens religiosas. Afirmam-se, nos círculos católico-romanos liberais atuais,
que tudo o que devemos aprender do três capítulos do Gênesis é que, no processo
evolutivo de animal a homem, a única coisa que se necessitou é que Deus
introduzisse em certo momento uma alma racional. Isto é totalmente
revolucionário em relação ao que Roma havia ensinado ainda em nossa própria
geração, e significa um fortalecimento definido do humanismo.
Em segundo lugar, Roma mudou radicalmente na
questão de quem se salva. No passado, o catolicismo romano ensinava, como
todavia o faz na Espanha ou no Sul da Itália, por exemplo, que não havia
salvação possível fora da Igreja Católica Romana. Hoje em dia, a ênfase recai
em que todos os homens sinceros, e de boa vontade, são salvos. Na Igreja
primitiva e na Reforma se enfatizou o ensinamento bíblico de que quem não
estivesse na Igreja de Cristo (quem não tivesse tomado a Jesus Cristo como
Salvador) estaria condenado. Segundo o antigo sistema católico-romano, aqueles
que permaneciam fora da organização da Igreja Católica Romana estavam perdidos.
Em ambos os casos, nos encontramos com o fato de que havia alguém que estaria
perdido. No novo ensinamento católico-romano, com seu acrescentado humanismo, é
muito difícil saber quem está perdido; e com respeito aos círculos
católico-romanos mais pronunciadamente liberais, não se pode estar seguro se
alguém se perde.
Assim, nos achamos ante o velho humanismo, que
começou na época de Constantino, da Igreja Católica Romana, porém aumentado
agora com o humanismo do moderno catolicismo-romano. Deve-se notar, por
conseguinte, que o novo conceito liberal católico-romano não constitui um rompimento
absoluto com o antigo catolicismo romano, já que este mesmo tem sido sempre
humanista. Constitui simplesmente uma confluência das diversas correntes de um
mesmo canal. Deve-se notar, também, que um homem como Teilhard de Chardin, tão
popular na Europa e América, corresponde exatamente a esta circunstância.
Ao mesmo
tempo
Ao mesmo tempo, o protestantismo humanista, que se
iniciou com a erupção da alta crítica alemã, está se movendo, por sua parte,
cada vez mais na mesma direção. Existe um notável paralelo entre o que sucede
no campo liberal católico-romano, e o que se passa no protestantismo. Assim
como o antigo catolicismo romano humanista está se transformando no humanismo
ainda mais aberto do catolicismo romano liberal, também o antigo protestantismo
liberal está desenvolvendo um novo liberalismo. Desde a aparição da teologia
kierkegaardiana, isto é, a chamada neo-ortodoxia, se utiliza mais a palavra
“Deus”, assim como outros termos religiosos, porém significa menos. No velho
protestantismo liberal, as coisas eram, ao menos, certas ou falsas — no espaço,
tempo e história —, de um modo que qualquer um poderia entender. No novo
protestantismo liberal, a imprecisão que se pode notar nas obras de Teilhard de
Charlin, é igualmente aparente. As afirmações do bispo Pike, da Califórnia,
devem ser entendidas neste contexto teológico. Ele tem levado simplesmente o
novo liberalismo de Kierkegaard, Barth, Brunner e Niebuhr a suas conclusões
lógicas, porém falando numa linguagem clara, isenta de termos técnicos, de
maneira que a força completa do lendário novo mundo religioso do liberalismo
pode ser percebida pelo não especialista. Bultmann e Tillich têm feito o mesmo,
conduzindo o pensamento de Kierkegaard a suas conclusões lógicas; e no caso de
Tillich, parece provável que ele tenha ido mais longe do que Pike, porém suas
obras estão escritas com uma terminologia tão elevada, que somente os que
entendem podem dar-se conta da força do que foi escrito. Em todos os casos, a
palavra “Deus” veio significando cada vez menos, até ao extremo de que uma
pessoa deve se perguntar assombrada se nessa teologia há algum Deus. Esta é
exatamente a direção que segue o catolicismo romano humanista em sua nova forma
liberal, mostrada por Tielhard de Chardin. Devemos afirmar novamente, desta vez
referindo-nos ao protestantismo liberal, que seu Deus não é o bíblico.
No pensamento oriental, a “justificação da vida” é
a meditação. Isto não significa que meditando se encontre algo necessariamente,
mas que a meditação como tal, dá à vida humana um aparente propósito e
significado. No novo liberalismo se encontra a fé, desde Kierkegaard, como um
passo nas trevas, como a justificação da vida. Isto está mais em consonância
com a mente ocidental que a meditação, porque o passo nas trevas incumbe à ação
e, portanto, à vontade de sofrer pela própria ação. Porém, basicamente é o
mesmo: o passo nas trevas traz a justificação da vida, e a terminologia
religiosa vem sempre sendo usada cada vez mais para que pareça dar um propósito
à vida. Porém, nunca se está seguro se nela há realmente algum significado, e a
própria palavra “Deus” se torna mais e mais vaga, até desaparecer até mesmo a
distinção entre um Deus pessoal ou impessoal. Neste ponto, o catolicismo romano
e o protestantismo liberal humanista, ambos em sua nova forma, estão perto de
se unirem; e em termos de humanismo, ambos estão relacionados com o conceito
clássico grego de ideias e ideais, assim como com os conceitos orientais.
É
significativo
É significativo que “O fenômeno do homem”, obra de
Teilhard de Chardin, publicada depois de sua morte, mostre a marca desta união.
Teilhard de Chardin era jesuíta. Julian Huxley, ateu, escreveu a introdução do
livro. E tanto na Europa como na América, são os protestantes liberais que o
recomendam. Tudo isso não é senão o desenvolvimento do antigo catolicismo
romano humanista transformando-se no novo catolicismo romano liberal; e o velho
liberalismo humanista protestante movendo-se progressivamente na mesma direção,
no novo liberalismo da neo-ortodoxia. Assim, em nossos dias, a diferença entre
a Rocha humanista e o novo protestantismo liberal, o neo-ortodoxo, é de
detalhe, e não básica.
Conclusões
Isto nos leva a perceber, como primeira conclusão,
de que não existe uma verdadeira razão para que não haja um movimento em
direção à união entre o catolicismo romano e o protestantismo liberal. Quando o
arcebispo de Canterbury visitou o Papa, disse: “Já não há necessidade de nos
estorvarmos um ao outro. Pois, se já não estamos um contra o outro, estamos um
pelo outro, e assim podemos ser gloriosamente livres para estar juntos por
Jesus Cristo e pela verdadeira unidade de Sua Igreja. Eu digo expressamente
«unidade» e não «união», porque a união ou re-união se baseia numa
reconciliação de jurisdições e autoridades. Porém, a unidade é só de espírito,
e nesse espírito...podem entrar nas igrejas facilmente, e inclusive já estão
entrando na atualidade“.
Isto é simplesmente um exemplo do que temos estado
dizendo. O catolicismo romano e o novo protestantismo liberal descansam sobre a
mesma base, e não existe nenhuma razão em absoluto, exceto com respeito a
detalhes, para que não se unam. Qualquer conceito de verdade absoluta foi
expulso em ambos campos.
Os escritos de um homem como o jesuíta
norte-americano John Courtney Murray devem ser entendidos nessa estrutura. Ele
e seus colegas estão instando para que os EE.UU., e também os países do Norte
da Europa de tradição reformada, comecem a se desenvolverem sobre a base do
conceito católico-romano de “lei natural”. Os católico-romanos instam nisto
porque afirmam, com bastante razão, que os EE.UU. (como toda a cultura
norte-européia) não têm ainda uma base, ou consenso, sobre o que fazer nos
domínios da moral social, do direito, do governo, etc. Nisto tem razão quem
pensa como Murray; porém o motivo pelo qual os EE.UU. e demais países
mencionados não têm ainda uma base ou consenso para atuar, é que, tendo
renunciado ao que a Reforma ensinou, tornaram-se abruptamente humanistas, e não
têm absolutamente ao que se referir, ou sobre o que fundamentar suas ações.
Porém, o conceito católico-romano de lei natural é
igualmente humanista e sem um absoluto em relação ao qual atuar. Temos visto
que o humanismo entrou no sistema católico-romano a partir de Constantino, e
especialmente que o catolicismo romano liberal moderno é devastadoramente
humanista. O mesmo J.C. Murray reconhece tudo isso quando diz que a noção de
lei natural é pré-cristã, anterior até mesmo aos antigos gregos, e que foi
Tomás de Aquino que modelou e poliu este conceito. Isto está especificamente
relacionado com as pinturas de Rafael e Miguel Ângelo no Vaticano. Faz parte do
intento católico-romano para alcançar a síntese entre o pensamento humanista e
o bíblico; e no âmbito do governo, o direito e a moral social, deve finalmente
dar como resultado sempre conclusões humanistas e, portanto, relativas. Assim,
por exemplo, a revista “Time”, de 12 de dezembro de 1960, tratando sobre o
conceito de lei natural que sustenta John C. Murray, disse: “O critério de bom
e mal deve ser achado na natureza do homem; o homem é — de maneira natural — um
ser social; e por isso, o bem da sociedade é o do homem. O robô, por exemplo, é
mal porque subverte a base da vida social, já que faz alguma mal, no terreno
privado, a outro. Quando há conflito entre a satisfação das necessidades
naturais, o racional (e por isso, legal) é subordinar a mais baixa à mais alta.
Assim, a auto-conversação é algo bom; porém, a oposição arriscando a própria
vida quando a exige o bem da sociedade, é algo mal”.
Do ponto de vista bíblico, o pecado é tal porque é
contra Deus, não porque seja contra a sociedade. Quando prejudicamos a um ou
vários homens é pecado, não porque tenhamos lhes prejudicados, mas porque lhes
ocasionar danos contradiz a existência, o caráter e a lei de Deus. Assim, pois,
o sistema bíblico é não-humanista , e absoluto. Porém, o sistema
católico-romano é humanista e relativo, primeiro em sua teologia — inclusive em
sua visão de Deus —, e logo em sua aplicação prática da lei natural. O conceito
católico-romano de lei natural é parte da “sistemática síntese” de que fala
Argan quando trata da arte de Rafael.
Na teologia católica-romana achamos uma linha
ininterrupta entre o homem tal como foi criado, o homem pecador, e o homem
redimido. No pensamento católico-romano a queda do homem não foi realmente
total; e a salvação consiste unicamente na adição de uma justiça infundida no
indivíduo. Esta linha ininterrupta é a base de seu conceito de lei natural. O
ensinamento bíblico é radicalmente diferente: existe um rompimento total na
queda de homem, e outra vez o mesmo na justificação. Por causa de tal queda, o
homem permaneceu verdadeiramente morto. Na justificação, este passa do estado
de verdadeira morte para o de vida real. Segundo a Sagrada Escritura, o homem,
depois de sua queda, ainda é verdadeiramente “imagem” de Deus, no sentido de
que permanece como criatura moral e racional. Ser uma criatura moral e racional
depois da queda quer dizer, segundo a Bíblia, três coisas:
I. — O homem não redimido, todavia, pode desejar
significância porque se acha ainda no universo para o qual foi criado; ela
ainda é moral e racional. O pintor não redimido ainda pode pintar, o que ama
ainda pode amar, etc.
II. — Como diz Romanos 1:19-20, o fato de que o
homem permanece como um ser moral e racional o condena, porque dentro de si, em
sua consciência, e na criação que o rodeia, tem testemunhas que lhe dizem que
vivemos num universo moral-pessoal e que há um Criador. O fato de que o homem
não redimido tenha uma consciência que o condena, está relacionado com o de que
continua sendo um ser moral. O fato de que deveria ser capaz de pensar e saber,
por causa da criação que o rodeia, que há um Deus, está relacionado com o de
que continua sendo um ser racional. Que tenha ainda uma consciência, que
continue amando, que continue anelando e buscando a beleza, o condena, porque
estas coisas lhe indicam e deveriam levar-lhe numa direção exatamente oposta à
que constitui a conclusão lógica de toda crença não cristã. A conclusão lógica
de todas elas é que o universo é impessoal e amoral.
III. — Que o homem seja ainda um ser moral e
racional e, portanto, não uma máquina, estabelece uma situação em que pode
ouvir o Evangelho, e começar a refletir.
Porém na queda, o homem morreu. A força do
existencialismo secular consiste em que reconhece e afirma que o homem está
morto. Os existencialistas estão de acordo com a Bíblia neste ponto básico.
Contudo, esta nos diz o porque o homem se acha nesta condição, e nos dá o
remédio para a mesma. O homem foi criado com o propósito de que amasse a Deus
com todo o seu coração, com toda sua alma e com toda sua mente, e havendo-se
rebelado, é culpado, e está morto e sem propósito. Depois da queda histórica no
Éden, a culpabilidade do homem lhe separa totalmente de Deus, e todas as
relações secundárias estão pervertidas — as relações do homem consigo mesmo,
com os demais, e com a criação —. A noção bíblica é absolutamente diferente da
opinião de que existe uma linha ininterrupta, através da queda, desde a criação
até a salvação. O homem, em sua rebelião contra Deus, destruiu o propósito
primário para o qual foi criado e, portanto, todas as coisas estão pervertidas.
De acordo com a noção bíblica, o homem se torna, na salvação, sobre a base da
obra consumada de Cristo, uma nova criatura nEle, e, ainda que não de modo
perfeito nesta vida, porém todavia real, todas as relações secundárias ocupam
assim seu lugar devido. Em outras palavras: segundo a mente da Escritura, um
humanismo não-regenerado não chega a ser humano e conduzirá ao infra-humano em
todos os aspectos da vida, incluindo um consenso para a moral, o direito ou o
ponto de vista social. Assim, pois, edificar sobre o conceito católico-romano
de lei natural, ou sobre qualquer outro conceito humanista não-regenerado, é construir
sobre o que conduzirá a algo que está por baixo da verdadeira humanidade, e que
reduz progressivamente o homem à condição de máquina ou animal.
Ou, para dizer de outro modo: sendo a Igreja
Católica Romana basicamente humanista, deve tratar sempre com o relativo, isto
é, é o posto ao guardião do Absoluto, seja no entendimento, seja na moral. Na
noção bíblica, todos os elementos humanistas estão eliminados. Na do
catolicismo romano, todos os elementos humanistas básicos estão presentes.
O homem vive hoje num vazio total, busca
desesperadamente uma base, e o catolicismo romanos lhe está recomendando que
aceita como tal seu conceito de lei natural. Este possui um atrativo especial
para os intelectuais, porém quando é examinado, se vê que não é uma base
absoluta de maneira alguma, e que na realidade está relacionado com todas as
demais formas de humanismo que nos assediam. Existem o humanismo protestante
liberal, o comum norte-americano, e o mais recente, o socialismo, elaborado
pelo polaco Adam Schaff. Este último é a nova variedade comunista de humanismo.
O humanismo católico-romano é só uma parte deste quadro, e não provê solução
alguma — todas estas vozes juntas se acham no âmbito de um retorno do mundo
humanista gentio ao que existia antes de Jesus Cristo, porém tanto mais grave
visto que seus componentes são universais. Existe pouca possibilidade de
revolução, e não lugar para onde ir.
A segunda
conclusão
A segunda conclusão é, por conseguinte, que o
catolicismo romano não difere basicamente, em relação ao consenso de lei
natural que está oferecendo ao homem em seu dilema, das outras formas
humanistas — como sua teologia, tão pouco difere no básico das demais
concepções humanistas, sendo a base de tudo isso o fato de que o catolicismo romano
adora a um Deus imperfeito — Aceitar o conceito católico-romano de lei natural
é viver sem base absoluta, e isso pode acarretar tão somente como resultado que
a arbitrária voz da igreja venha a ser a norma, como ocorreu antes da Reforma.
Transladar-se do vazio do pensamento geral de nosso século ao pensamento
católico-romano, com relação ao governo, o direito, a sociedade, etc., é, no
final da contas, passar só do vazio para outro vazio, sendo a norma a
arbitrária e totalitária voz da igreja.
A Igreja primitiva e a Reforma, como temos visto,
descansavam sobre duas colunas não humanistas, e na Reforma — quando um número
suficiente de homens criam nestas coisas —, elas proviam uma base absoluta para
a sociedade, o governo, o direito, etc. Porém agora que o mundo ocidental
pós-cristianismo não crê ainda nestas coisas, não existe uma base, e o caminho
que se segue conduz ao caos, ou ao totalitarismo em qualquer de suas
manifestações. Isto é, segue-se esse caminho, a menos que Jesus Cristo volte,
ou que de novo haja um número suficiente de homens que creiam e atuem nas e
sobre as duas colunas não-humanistas tantas vezes mencionadas, e detenham essa
marcha.
A terceira
conclusão
A terceira conclusão é que os verdadeiros
evangélicos devem permanecer sobre a base das duas colunas não-humanistas sem
vacilar, ainda que isso signifique permanecer sozinhos. De outro modo, não
constituiremos uma ajuda real na salvação de almas, e não seremos úteis na
escuridão moral do século XX, quando o homem se torna progressivamente menos
humano, tanto na vida privada como na pública, em ambos lados da Tela de Ferro.
O cristianismo tem algo para dizer no século XX no que diz respeito ao direito,
ao governo, à vida social, às artes, etc.; porém, não pode dizê-lo se
compromete as duas colunas não-humanistas. Tudo isso significa permanecer tão
claramente apartado do chamado católico-romano para com a lei natural, ou do
chamado das conclusões sociológicas neo-ortodoxas nas pessoas de Brunner,
Niebuhr, etc., como do humanismo popular norte-americano. Isto não pode se
fazer na carne, senão que deve ser feito no poder do Espírito Santo, tomando
acrescentada força no Senhor, conforme nosso complexo religioso-cultural se
torna cada vez menos cristão. Em breves palavras, conforme vem a ser cada vez
mais como o que circundava à Igreja primitiva. Porém, qualquer coisa que seja
menos que o indicado, será finalmente a negação de nossa herança das duas
colunas exclusivas não-humanistas, e nos fará ineficazes para ajudar tanto às
pessoas individualmente, como à sociedade.
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