Deparei-me pela primeira vez com uma obra de
Richard Dawkins no final de 1977, quando li seu primeiro livro importante, O
gene egoísta. Estava completando minha pesquisa doutoral no departamento de
bioquímica da Universidade de Oxford, sob a cordial supervisão do professor Sir
George Radda, diretor geral do Conselho de Pesquisa Médica. Na época,
esforçava-me por entender como membranas biológicas podiam trabalhar de forma
tão competente, desenvolvendo novos métodos físicos para estudar o seu
comportamento.
Apesar de que apenas alguns anos depois O gene
egoísta iria alcançar o status de peça de veneração que agora desfruta, era
obviamente um livro maravilhoso. Eu admirava o modo incrível de Dawkins lidar
com as palavras e sua habilidade em explicar com tamanha clareza as cruciais —
apesar de frequentemente difíceis — ideias científicas.
Tratava-se de um texto de divulgação científica em
sua melhor forma. Não houve nenhuma surpresa, portanto, quando o New York Times
comentou que era “o tipo de texto de popularização da ciência que fazia o
leitor se sentir um gênio”.
Da mesma forma, somente alguns anos mais tarde se
estabeleceria a reputação de Dawkins como o “rottweiler de Darwin”. Porém,
mesmo nessa obra inicial, marcas de uma sensível polêmica anti-religiosa podiam
ser entrevistas. No tempo de aluno cheguei a acreditar, da mesma maneira que Dawkins,
que as ciências naturais exigiam uma visão de mundo ateísta. Mas, naquele
momento, não era mais assim. Fiquei naturalmente interessado em ver que tipo de
argumentos Dawkins havia desenvolvido em defesa dessa ideia interessante.
O que encontrei não foi em especial persuasivo. Ele
oferecia algumas confusas tentativas de dar sentido à ideia de “fé”, sem
estabelecer uma adequada base analítica e comprobatória para suas reflexões.
Senti-me incomodado por causa disso e mentalmente me programei para escrever
algum dia umas palavras em resposta.
Amo as ciências naturais desde que posso me lembrar
de amar qualquer coisa. Quando tinha quase dez anos, construí um pequeno
telescópio refletor de forma que pudesse estudar as maravilhas dos céus.
Encontrei-me encantado pelas imagens cintilantes das luas de Júpiter e das
crateras lunares. Fiquei extasiado pela sensação de estar investigando um
universo vasto, impressionante, misterioso e bastante subjugado pela
experiência. Um velho microscópio alemão — presenteado por um tio-avô que havia
sido chefe de patologia no Royal Victoria Hospital, em Belfast — abriu o mundo
da biologia para mim (ainda repousa sobre a minha escrivaninha de estudos). Aos
13 anos eu já fora fisgado. Não havia nenhuma dúvida a respeito do que faria
pelo resto de minha vida. Eu estudaria as maravilhas da natureza.
Uma mudança de escola, em 1966, injetaria uma nova
energia em minha visão. O Methodist College de Belfast havia construído todo um
novo setor de ciências naquela época e o equipara de forma esplêndida para os
padrões da época. Lancei-me ao estudo das ciências e da matemática, enquanto me
especializava em química e física. Foi um diletantismo amplamente recompensado
pela excitação mental que gerava. Nessa fase, era uma verdade auto-evidente para
mim que as ciências haviam desbancado Deus, fazendo da crença religiosa uma
relíquia bastante insensata de uma era passada. No entanto, minhas concepções
sobre isso foram significativamente aguçadas pelos eventos no final dos anos
1960.
Uma onda de sentimento anti-religioso varria a face
da cultura ocidental. Tom Wolfe captou muito bem tal humor cultural em seu
ensaio “The Great Relearning” [O grande reaprender]: tudo seria varrido para
longe num frenesi de descontentamento e reconstruído do zero.1 Nunca antes
havia sido possível uma radical reconstrução prometéica das coisas como essa.
Estava na hora de aproveitar o momento e romper decisivamente com o passado!
A religião seria jogada fora como detrito moral da
humanidade, na melhor das hipóteses era uma impropriedade para a vida real e,
na pior, um mal, uma força perversa que escravizara a humanidade com suas
mentiras e ilusões.
Como a retórica da última oração deve ter deixado
bem claro, eu havia me inclinado para o pior cenário. As ciências naturais sugeriam
que Deus não era necessário para explicar qualquer aspecto do mundo. Além
disso, como muitos nesses dias embriagantes de otimismo e fervor
revolucionários, eu havia bebido profundamente nas fontes marxistas, passando a
ver a religião como uma ilusão perigosa. Uma conclusão fácil de se chegar, no
meu caso, em razão do conflito religioso na Irlanda do Norte; e eu a aceitei no
momento sem muita dificuldade ou reflexão.
Possuía agora uma nova razão para amar as ciências.
Havia me deparado com um provérbio árabe que parecia resumir as coisas com
perfeição: “O inimigo de meu inimigo é meu amigo”. As ciências não eram só
intelectualmente fascinantes e esteticamente prazerosas: elas também arruinaram
a plausibilidade da crença religiosa e, por conseguinte, abriram caminho para
um mundo melhor. A religião era sem dúvida uma superstição medieval “idiota”
que nenhum amante da verdade ou uma pessoa moralmente séria poderia tolerar. E
isso estava se consolidando. Um luminoso e ateu amanhã estaria raiando em breve.
O ateísmo era a única opção para quem se confronta com os fatos. Vi meu futuro
— com muita arrogância, devo concordar por completo — em termos de trazer luz e
alegria ao pregar o evangelho do ateísmo científico, e até mesmo tentei (sem
sucesso) estabelecer uma Sociedade Ateísta em minha escola.
Decidi estudar química na Universidade de Oxford
como um meio para atingir esse fim. O curso de química de Oxford era o melhor
do país, o que me levou a fixá-lo firmemente como meu objetivo.
A decisão me obrigou a realizar um semestre a mais
no Methodist College, a fim de obter formação especial em química avançada para
a preparação aos exames de admissão de Oxford, em dezembro de 1970. Pouco antes
do Natal, soube que conseguira uma vaga no Wadham College de Oxford para
estudar química. Meu cálice de alegria transbordava.
Mas só poderia ingressar em Oxford em outubro de
1971. O que fazer enquanto isso? Meus colegas que também haviam prestado exames
de admissão se dispersaram em viagens pelo mundo ou foram ganhar algum dinheiro
honesto. Decidi permanecer no colégio pelo resto do ano e usar o tempo me
preparando para Oxford. Aprenderia alemão e russo, que seriam úteis para ler
periódicos químicos profissionais como o Zeitschrift für physicalische Chemie
ou Zeitschrift für Naturforschung. O que também me permitiria ler os trabalhos
de Karl Marx, Friedrich Engels e V. I. Lênin em seus idiomas originais. Além
disso, teria tempo para consolidar minhas leituras de biologia que havia
negligenciado em virtude de me concentrar tão pesadamente em física, química e
matemática.
Depois de um mês ou mais de intensos estudos na
biblioteca de ciências, havendo esgotado as obras de biologia, encontrei uma
seção que antes nunca notara. Intitulava-se “A história e a filosofia da
ciência” e estava coberta de pó. Havia dedicado pouco tempo a esse tipo de
assunto, tendendo a considerá-lo como uma crítica desinformada das certezas e
simplicidades das ciências naturais por aqueles que se sentiam ameaçados por
elas — os quais Dawkins chamaria depois de “provocadores da verdade”.2
Filosofia, como teologia, era com certeza uma especulação insensata sobre
assuntos que poderiam ser resolvidos por umas poucas experiências honestas.
Qual era o problema?
Peguei um título e comecei a ler. Hoje sei que History
and Philosophy of Science: An Introduction (1959) [História e filosofia da
ciência: uma introdução], de L. W. Hull, é uma iniciação bastante pobre à
matéria, em especial por sustentar concepções que foram populares no período
vitoriano. Mas me chamou a atenção e me seduziu para coisas mais importantes.
Ao terminar a leitura das disponibilidades algo escassas da biblioteca nesse
campo, percebi que necessitava fazer algumas reconsiderações muito sérias.
Longe de ser um obscurantismo tolo, que colocava
obstáculos desnecessários à condição inexorável do avanço científico, a
história e a filosofia da ciência faziam perguntas pertinentes sobre a
confiabilidade e os limites do conhecimento científico. E eram perguntas que eu
não havia enfrentado até ali. Senti-me como um cristão fundamentalista que de
repente descobrira que Jesus não havia pessoalmente escrito o Credo dos
Apóstolos, ou como alguém que acreditava na terra plana e fora forçado a mudar
de ideia com fotografias o planeta tiradas do espaço. Questões como a
indeterminação da teoria pelos dados, mudanças teóricas radicais na história da
ciência, as dificuldades para desenvolver uma “experiência crucial” e os
problemas extremamente complexos associados à determinação de qual a “melhor
explicação” para um conjunto definido de observações acumuladas em mim — tudo
isso turvou o que eu tomara como a clara e tranquila água da verdade
científica.
As coisas se mostraram muito mais complicadas do
que havia pensado. Meus olhos tinham sido abertos e percebi que não havia
retorno àquela forma simplista de ciência na qual acreditara antes. Como muitas
pessoas na mesma fase de formação, eu desfrutara a beleza e a inocência de uma
atitude pueril em relação às ciências e, secretamente, desejava permanecer
naquele lugar seguro.
De fato, creio que uma parte de mim quis muito que
eu nunca tivesse retirado aquele livro, nunca tivesse feito tais perguntas
desajeitadas e nunca tivesse questionado a simplicidade da minha mocidade
científica. Mas não havia caminho de volta. Tinha entrado por uma porta e não
podia escapar ao novo mundo que então divisara.
Estudar química em Oxford foi, conforme esperava,
uma experiência estimulante, alargando meus horizontes mentais e criando desafios
novos. Do jeito que as coisas aconteceram, esses horizontes se expandiram em
uma direção que nunca teria conseguido antecipar. Ao final de 1971, em meu
primeiro semestre na Universidade de Oxford, comecei a descobrir que o
cristianismo era bem mais interessante e consideravelmente mais excitante do
que pensava. Embora tivesse sido bastante crítico com o cristianismo quando
jovem, nunca havia estendido o mesmo exercício crítico ao ateísmo, assumindo
por princípio que era, de forma auto evidente, correto e, portanto, isento de
ser avaliado desse modo. De outubro a novembro de 1971, passei a perceber que a
justificativa intelectual para o ateísmo era muito menos substancial do que
supunha. Longe de ser uma verdade auto evidente, parecia descansar em bases bastante
frágeis.
Por outro lado, o cristianismo se mostrou
intelectualmente mais robusto do que havia pensado.
Minhas dúvidas sobre os fundamentos intelectuais do
ateísmo começaram a se sedimentar ao perceber que o ateísmo era na verdade um
sistema de crenças, o qual eu havia assumido como uma explicação factual da
realidade. Também descobri que sabia bem menos a respeito do cristianismo do
que acreditava. Conforme passei a ler livros cristãos e a escutar amigos
cristãos explicando sobre aquilo que de fato acreditavam, ficou gradualmente
claro para mim que eu havia rejeitado um estereótipo religioso. Tive então que
fazer uma reconsideração mais importante. Ao final de novembro de 1971, tomei a
minha decisão: virei as costas para uma fé e abracei outra.
Em setembro de 1974, associe-me ao grupo de
pesquisa do professor George Radda, no departamento de bioquímica da
Universidade de Oxford. Radda estava desenvolvendo uma série de métodos físicos
para investigar sistemas biológicos complexos, incluindo técnicas de ressonância
magnética. Meu interesse particular estava em desenvolver métodos físicos
inovadores para estudar o comportamento de membranas biológicas, entre eles o
uso de testes fluorescentes e emissão de pósitrons para investigar transições
dependentes de temperatura em sistemas biológicos e seus modelos.3
Mas meu real interesse estava mudando de lugar.
Nunca perdi minha fascinação pelo mundo natural. Apenas me deparei com outra
coisa que surgia, inicialmente rivalizando com aquela fascinação e, então, complementando-a.
Pois o que antes eu havia assumido como uma progressiva guerra aberta entre a
ciência e a religião passou a se apresentar como uma sinergia crítica e, ainda,
construtiva, com um imenso potencial de enriquecimento intelectual. Comecei a
querer saber, de que maneira os métodos de trabalho e os pressupostos das
ciências naturais poderiam ser usados para desenvolver uma teologia cristã
intelectualmente robusta?4 E o que deveria fazer para explorar essa
possibilidade de forma adequada? Passei o verão de 1976 trabalhando na
Universidade de Utrecht, graças a uma bolsa de estudo oferecida pela European
Molecular Biology Organization [Organização de Biologia Molecular Européia]; e
pouco a pouco cheguei à conclusão de que só poderia fazer isso estudando
teologia na esfera acadêmica, junto com uma pesquisa avançada sobre a relação
entre teologia e ciência.
Por sorte, eu acabara de ser escolhido para uma
bolsa de estudos sênior no Merton College que me permitiu continuar minha
pesquisa biofísica enquanto, ao mesmo tempo, estudava teologia.
Em junho de 1978, obtive meu doutorado em biofísica
e uma graduação com distinção em teologia e me preparava para deixar Oxford a
fim de fazer pesquisa teológica na Universidade de Cambridge. Para minha
surpresa, recebi um convite para almoçar com um editor sênior da Oxford
University Press [Editora Universitária de Oxford]. A universidade é um lugar
muito pequeno e fofocas se espalham muito depressa. A editora ouvira falar da
minha “interessante carreira atual”, explicou-me o executivo, e tinha um
atraente negócio a me oferecer. O gene egoísta de Dawkins gerara um enorme
interesse. Será que eu não teria vontade de escrever uma resposta a partir de
uma perspectiva cristã?
Sob qualquer ponto de vista, O gene egoísta era uma
grande leitura: estimulante, polêmico e informativo. Dawkins possuía aquela
rara habilidade de fazer coisas complexas ficarem compreensíveis, sem fazer
concessões a seu público. No entanto, ele fizera mais do que apenas tornar a
teoria da evolução inteligível. Dawkins estava disposto a expandir suas
implicações a todos os aspectos da vida, propondo na verdade o darwinismo como
uma filosofia universal de vida, em vez de uma mera teoria científica. Era um
material instigante — muito melhor, em minha opinião, do que a obra precedente
de Jacques Monod, Chance and Necessity (1971) [trad.em port.: O acaso e a
necessidade: ensaio sobre a filosofia natural da biologia moderna. Petrópolis,
RJ: Vozes, 2006], que explorava temas semelhantes. E, como todos os escritores
provocativos, detonou debates tão importantes quanto intrinsecamente
interessantes, como a existência de Deus e o significado da vida. Seria um
livro fascinante para se escrever. Só um tolo, lembro-me de ter pensado na
ocasião, poderia resistir a tal convite.
Bem, este sou eu: depois de muito pensar, escrevi
uma educada resposta, agradecendo ao meu colega pelo almoço e explicando que
ainda não me sentia preparado para escrever semelhante livro.
Havia, na minha visão, muitos outros mais bem
qualificados. Seria apenas uma questão de tempo antes de outra pessoa escrever
um livro em resposta às ideias de Dawkins. Assim fui para Cambridge pesquisar a
teologia cristã, sendo então ordenado na Igreja da Inglaterra. Depois de um
período de trabalho numa paróquia inglesa, achei o caminho de volta para
Oxford. Embora não fosse mais capaz de empreender uma pesquisa científica, os
recursos da excelente biblioteca da Universidade de Oxford significavam que eu
poderia manter e ampliar minhas leituras sobre história e filosofia da ciência,
como também acompanhar os mais recentes desenvolvimentos experimentais e
teóricos nesse campo.
Mas eu não havia esquecido Dawkins. O gene egoísta
introduzira um novo conceito e uma nova palavra na investigação da história das
idéias: o “meme”. Como a área de pesquisa que esperava seguir era a história
das ideias (especificamente da teologia cristã, mas contraposta ao pano de
fundo do desenvolvimento intelectual em geral), eu fizera uma extensa pesquisa
básica sobre os modelos existentes de como as ideias foram desenvolvidas e
recebidas através das culturas. Nenhum deles parecia satisfatório.5 Mas a
teoria de Dawkins do “meme” — um replicador cultural — parecia oferecer um
vigamento teórico novo e brilhante para se explorar a questão geral sobre as
origens, o desenvolvimento e a recepção de ideias, baseando-se na rigorosa
investigação científica empírica. Recordo com intensa emoção o momento de
completa excitação intelectual quando, em certo dia no final de 1977, percebi
que poderia haver uma alternativa aceitável aos ultrapassados e inconvincentes
modelos de desenvolvimento de doutrinas que havia explorado e rejeitado naquela
fase. Esse poderia ser o futuro?6
Como conhecia o trabalho de Darwin sobre os
tentilhões [ou pintassilgos] das Galápagos, isso me ajudou a abordar as
evidências com ao menos uma estrutura teórica provisória.7
E assim comecei a investigar usando o “meme” como
um modelo para o desenvolvimento de doutrina cristã. Num próximo capítulo,
farei um relato mais completo dos meus vinte e cinco anos de avaliação do
conceito de “meme”, assim como de sua utilidade. Basta por ora dizer que
certamente fui um tanto otimista demais em relação à sua fundamentação empírica
rigorosa e ao seu valor como ferramenta para o estudo crítico do desenvolvimento
intelectual.
Nesse ínterim, Dawkins produziu uma série de livros
brilhantes e provocadores, que devorei com interesse e admiração. Dawkins,
depois de O gene egoísta, publicou: The Extended Phenotype (1981) [O fenótipo
estendido], O relojoeiro cego (1986), O rio que saía do Éden (1995), A escalada
do monte improvável (1996), Desvendando o arco-íris (1998) e, finalmente, a
coleção de ensaios O capelão do Diabo (2003). O tom e o foco de sua escrita
haviam mudado. Conforme o filósofo Michael Ruse demonstrou em uma resenha de O
capelão do Diabo, “a preocupação [de Dawkins] passou de um texto sobre a
ciência dirigido a uma audiência popular para um ataque total ao
cristianismo”.8 O brilhante divulgador científico se tornou um selvagem
polemista anti-religioso, pregando em lugar de debater (ou assim me parece) sua
posição.
Considero todos os tipos de fundamentalismo,
religiosos ou anti-religiosos, igualmente repugnantes e fiquei bastante
decepcionado com tal desenvolvimento de alguém que eu admirava. O juízo de
Dawkins sobre a religião chega a ser pouco mais que uma avaliação excêntrica,
sendo os extremos retratados como o típico. Os religiosos são descartados como
anticientíficos, intelectualmente irresponsáveis ou existencialmente imaturos —
isso quando ele está num bom dia.
Apesar do ateísmo de Dawkins ter ficado mais
estridente em seu tom e mais agressivo em suas afirmações, não se tornou mais
sofisticado em termos de argumentos oferecidos.
Gente religiosa é demonizada como desonesta,
mentirosa, tola e trapaceira, incapaz de responder com honestidade ao mundo
real, preferindo inventar um falso, pernicioso e ilusório mundo, a fim de
atrair o imprudente, o jovem e o ingênuo. Uma linha de pensamento que levou
muitos a sugerir, não completamente sem razão, que Dawkins poderia ter sido
vítima de um tipo de presunção que os escritores bíblicos associavam aos
fariseus. O escritor Douglas Adams recorda que Dawkins declarou um dia:
“Realmente não acho que eu seja arrogante, mas fico impaciente com pessoas que
não compartilham comigo a mesma humildade frente aos fatos”.9 No entanto, há o
embaraçoso fato, que Dawkins parece não querer aceitar, de que existem muitos
indivíduos sadios e inteligentes tirando conclusões por completo diferentes das
suas, precisamente em virtude do mesmo humilde compromisso com a evidência
científica. Talvez eles sejam loucos; talvez, maus, mas, por outro lado, talvez
não sejam nem uma coisa nem outra.
Dawkins escreve com erudição e sofisticação sobre
assuntos de biologia evolucionista, dominando claramente as complexidades desse
campo e de sua vasta literatura de pesquisa. No entanto, quando pretende tratar
de qualquer coisa referente a Deus, parece-nos que entra num outro universo. É
o universo de um colegial que quer debater sobre a sociedade baseado em
calorosos e apaixonados exageros; entusiasmado por algumas evidentes
simplificações e mais outras ocasionais deturpações (acidentais, prefiro
acreditar) para tornar superficialmente plausíveis certas observações — o tipo
de argumentos que uma vez me persuadiram de que o ateísmo era a única opção
para um indivíduo pensante, quando ainda era um colegial. Mas isso foi naquela
época. E agora, como ficamos?
Havendo lutado com as implicações do método
científico para a crença em Deus ao longo da minha adolescência, estava mais do
que surpreso com a qualidade dos argumentos oferecidos a favor do ateísmo nos
escritos de Dawkins dos anos 1980.
Parece bastante patente para Dawkins que as
ciências naturais devem levar a uma visão de mundo ateísta por parte de
qualquer pessoa honesta, inteligente. Os que acreditam em Deus são, portanto,
desonestos, iludidos ou tolos. No entanto os argumentos que ele propôs nos
trabalhos publicados no final dos anos de 1970 e nos de 1980 simplesmente não
levavam a essa conclusão. O ateísmo de Dawkins parecia estar fixado sobre sua
biologia evolucionária com um velcro intelectual. Minha esperança era que seus
textos produzissem um ateísmo novo, intelectualmente revigorado — algo de fato
excitante e atraente. Em vez disso, encontrei a mesma retórica pesada e os
velhos clichês surrados que bem conheci em meus dias de estudante. Dawkins
estava chovendo no molhado, reciclando em vez de renovar as justificativas do
ateísmo.
Desapontado, aguardei com paciência por seus
trabalhos dos anos 1990, esperando ver argumentos novos e mais persuasivos
serem desenvolvidos. Ao contrário, achei os mesmos velhos e embolorados
equivalentes ateístas aos argumentos “louco, mau ou Deus” usados por alguns
cristãos para provar a divindade de Cristo, 10 associados de maneira muito
tênue a alguns interessantes desenvolvimentos da biologia evolucionista. Ficou
cada vez mais claro para mim que as bases do ateísmo de Dawkins com certeza
repousavam, no final das contas, fora das ciências, e não dentro delas.
O ano 2003 chegou e, com ele, a publicação de O
capelão do Diabo. Não é um dos melhores trabalhos de Dawkins, em particular
porque se trata de uma coleção de ensaios desconexos, curtos demais para serem
capazes de lidar de forma correta com as questões que abordam. Em todo caso, o
livro destila cansaço intelectual, como se, a seu autor, tivesse faltado gás
intelectual. Nenhum livro apareceu ainda em resposta a Dawkins, além de uma
útil introdução às diferenças entre ele e Stephen Jay Gould em assuntos
evolucionistas.11
Por fim, no verão de 2003, vinte e cinco anos
depois que tal possibilidade tivesse sido discutida pela primeira vez, decidi
que estava na hora de escrever uma resposta.
Alguns poderiam esperar que este livro fosse uma
refutação religiosa a Dawkins. Estes terão de procurar em outro lugar, pois ele
não é nada do tipo. O real assunto para mim é como Dawkins deriva da teoria
darwinista da evolução uma confiante visão de mundo ateísta, a qual prega com
zelo messiânico e certeza inexpugnável. 12 Como o título do livro indica, há
algumas perguntas importantes a serem feitas sobre o tipo de deus que Dawkins
declara para ser supérfluo ou sem crédito.13 Que deus está sendo rejeitado?
Esse deus mantém alguma relação com conceitos concorrentes de divindade, como o
Deus do cristianismo? E essa rejeição é de fato justificada com base nos
argumentos que Dawkins oferece?
Portanto, é importante reconhecer desde o início
que este livro não é uma crítica à biologia evolucionista de Dawkins. Não
proponho debater as concepções específicas de Dawkins sobre a teoria da
evolução, mas as conclusões mais amplas que ele tira delas, particularmente as
relativas à religião e à história intelectual. Suas opiniões a respeito da
evolução devem ser julgadas como um todo pela comunidade científica; minha
preocupação — e o campo em que sou competente para me pronunciar — é por
excelência a transição extremamente importante e imensamente problemática da
biologia para teologia.
É algo por demais aceito que o método científico
não pode simplesmente decidir sobre a questão de Deus. A visão geral é que as
pessoas costumam chegar a suas concepções religiosas em outras bases e, então,
lançam mão de suas ideias científicas para a validação retrospectiva dessas
concepções. A ciência é assim usada para ajustar a visão de mundo, e se prova
capaz de acomodar pontos de vista teístas e ateus com notável facilidade.
Porém tal concepção aceita pode estar errada, e
Dawkins seria capaz de demonstrar que é esse o caso. Os assuntos que propõe são
tão importantes que não podem
ser ignorados, ou tratados com breves
pronunciamentos ou críticas superficiais, típicas da discussão proposta pela
mídia. Eles merecem uma discussão ampla e plena. O que espero encorajar é uma
investigação sobre o lugar das ciências naturais na formatação do mundo de
nossas mentes e da cultura em que vivemos, com base nos textos publicados por
Dawkins.
Dawkins empunha a força explicativa do darwinismo
numa mão, e os defeitos estéticos, morais e intelectuais da religião na outra;
conduzindo a pessoa honesta direta e inexoravelmente ao ateísmo. A humanidade
atinge a maturidade. Ela deixa para trás suas ilusões. Podemos “deixar a fase
do choro de bebê e finalmente atingir a maioridade”.14 Embora eu trate da
substância das concepções religiosas de Dawkins em certas ocasiões neste livro,
meu interesse se liga em especial à razão pela qual ele acredita que elas estão
corretas, em vez do que elas são em si mesmas. Este livro é um confronto
crítico com a visão de mundo de Dawkins, e tem a intenção de perguntar se a
afamada agressividade de seu ateísmo está realmente fundamentado nos argumentos
que ele apresenta.
A hostilidade de Dawkins contra a religião é
profunda e não se baseia em um único tópico específico. Podemos detectar quatro
razões interconectadas de hostilidade ao longo de seus escritos:
1. Uma visão de mundo darwinista torna a crença em
Deus desnecessária ou impossível. Embora indicada em O gene egoísta, a ideia é
desenvolvida em detalhes em O relojoeiro cego.
2. A religião faz afirmações fundamentadas na fé, o
que representa o abandono da busca da verdade em termos rigorosos e baseados na
evidência. Para Dawkins, a verdade é fundamentada em provas evidentes; qualquer
forma de obscurantismo ou misticismo fundamentada na fé deve ser vigorosamente
combatida.
3. A religião oferece uma visão de mundo
empobrecida e pálida. “O universo apresentado pela religião institucionalizada
é um universo medieval estreito, pequeno e por demais limitado”.15 Ao
contrário, a ciência oferece uma concepção ousada e brilhante do universo,
percebido como grandioso, belo e impressionante. Essa crítica estética à
religião foi em especial desenvolvida em 1998, na obra Desvendando o arco-íris.
4. A religião leva ao mal. Ela é como um vírus
maligno infectando as mentes humanas. Esse não é um juízo estritamente
científico, pois, como Dawkins observa com frequência, as ciências não podem
determinar o que é bom ou mau. “A ciência não possui um método para decidir
sobre o que é ético”.16 Porém sua objeção à religião é profundamente moral,
profundamente arraigada na cultura e história ocidentais, devendo ser
considerada com a maior seriedade.
Portanto qual dessas razões é a real base para o
ateísmo de Dawkins? Quais são as hipóteses nucleares e quais as auxiliares,
tomando emprestada a linguagem do empirismo? Em suas reflexões sobre o próprio
desenvolvimento intelectual, Dawkins costuma apresentar seu ateísmo como
havendo surgido naturalmente de sua progressiva convicção no total poder
explicativo do darwinismo — um desenvolvimento iniciado ainda durante os anos
finais na Oundle School. Mas o que acontece se o ateísmo de Dawkins for de fato
fundamentado em considerações morais e, só então, reposicionado em sua
atividade científica?
Assim, por que escrever um livro como este? Podem
ser dadas três razões. Primeiro, Dawkins é um escritor fascinante; tanto em
termos de qualidade das ideias que desenvolve quanto pela desenvoltura verbal
com que as defende. Qualquer um que esteja remotamente interessado no debate de
ideias encontrará em Dawkins um importante parceiro. Agostinho de Hipona
escreveu uma vez sobre o “eros da mente”, definindo-o como um profundo desejo
da mente humana em dar sentido às coisas — uma paixão por entender e conhecer.
Qualquer um que compartilhe tal paixão desejará entrar no debate iniciado por
Dawkins.
E esse pensamento está por trás da minha segunda
razão para escrever este livro. Sim, Dawkins parece, a muitos, ser imensamente
provocador e agressivo, descartando visões alternativas com uma pressa
indecente, ou tratando as críticas a suas concepções pessoais como um ataque a
toda a atividade científica. Entretanto, semelhante tipo de retórica acalorada
é encontrada em qualquer debate público, seja religioso, filosófico ou
científico. Na verdade, é isso o que faz os debates públicos serem
interessantes e os põe acima do ramerrão tedioso da discussão acadêmica normal,
a qual invariavelmente parece vir acompanhada de infinitas notas de rodapé,
citações de autoridades de peso, apesar de maçantes; e cautelosos eufemismos
opressivamente acompanhados de qualificativos.
Quão mais excitantes são os debates aguerridos, sem
restrições nem preocupações com as sufocantes convenções dos rigorosos estudos
acadêmicos! Dawkins, com toda clareza, deseja provocar tais debates e
enfrentamentos; seria descortês não aceitar seu convite.
Possuo, porém, uma terceira razão. Escrevo como um
teólogo cristão que acredita ser essencial ouvir com seriedade e atenção a
crítica à minha disciplina e respondê-la de maneira adequada. Um dos motivos
para levar Dawkins tão a sério é descobrir o que se pode aprender com ele. Como
qualquer honesto historiador do pensamento cristão sabe, o cristianismo se
obriga a uma constante revisão de suas ideias à luz das Escrituras e da
tradição, perguntando-se sempre se certa interpretação contemporânea de uma
doutrina é adequada ou aceitável. Conforme veremos, Dawkins oferece, em minha
opinião, uma poderosa e convincente contestação a um modo de pensar a doutrina
da criação que influenciou tremendamente a Inglaterra no século XVIII e que
ainda hoje encontra alguns abrigos. Ele é um crítico que precisa ser ouvido e
levado a sério.
Mas basta de preliminares. Vamos seguir em frente e
começar a investigar a visão de mundo darwinista que Dawkins tanto investiga e
recomenda.
Alister McGrath
Oxford
Referências:
1 Tom Wolfe, “The Great Relearning”. In Hooking Up,
p. 140-5. Londres: Jonathan Cape, 2000 [trad. em port.: Ficar ou não ficar. R.
Janeiro: Rocco, 2001].
2 A Devil’s Chaplain, p. 16 [trad. em port.: O
capelão do Diabo: ensaios escolhidos].
3 Para alguns exemplos, ver Alister E. McGrath,
Christopher G. Morgan, e George K. Radda, “Photobleaching: A Novel Fluorescence
Method for Diffusion Studies in Lipid Systems”. Biochimica et Biophysica Acta
426 (1976), p. 173-85; idem, “Positron Lifetimes in Phospholipid Dispersions”.
Biochimica et Biophysica Acta 466 (1976), p. 367-72.
4 Gastei a melhor parte de vinte e cinco anos para
entender como fazer isso: sobre o resultado, ver Alister McGrath, A Scientific
Theology, 3 v. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2001-3. Para uma abordagem mais
básica, ver Alister McGrath, The Science of God: An Introduction to Scientific
Theology. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2004.
5 Um dos modelos que inicialmente me despertou
maiores esperanças foi o de Pierre Rousselot, “Petit théorie du développement
du dogme”. Recherches de Science religieuse 53 (1965), p. 355-90.
6 Eu não era o único que estava tão entusiasmado
com a nova idéia de Dawkins: ver Stephen Shennan, Genes, Memes and Human
History: Darwinian Archaeology and Cultural Evolution. Londres: Thames &
Hudson, 2002, p. 7.
7 Mais tarde me perguntei se havia dado muita
importância a esse incidente no desenvolvimento intelectual de Darwin: ver
Frank J. Sulloway, “Darwin and His Finches: The Evolution of a Legend”. Journal
of the History of Biology 15 (1982), p. 1-53.
8 Michael Ruse, “Through a Glass, Darkly”. American
Scientist 91 (2003), p. 554-6.
9 Citado por Robert Fulford, “Richard Dawkins Talks
Up Atheism with Messianic Zeal”. National Post November 25, 2003.
10 Eles argumentam que Jesus de Nazaré era ou
louco, mau ou Deus. Não sendo nem o primeiro nem o segundo, ele deveria ser
então o terceiro. O argumento trabalha propondo apenas três soluções para um
assunto imensamente complexo, descartando duas delas. A principal crítica feita
a tal raciocínio é sua recusa simplista em considerar alternativas além das que
ele depende.
11 Kim Sterelny, Dawkins vs. Gould: Survival of the
Fittest. Cambridge: Icon Books, 2001. As idéias de Dawkins, é claro, são
tratadas em vários artigos e seções de livros, por exemplo, veja Michael Poole,
“A Critique of Aspects of the Philosophy and Theology of Richard Dawkins”.
Science and Christian Belief 6 (1994), p.41-59; Luke Davidson, “Fragilities of
Scientism: Richard Dawkins and the Paranoid Idealization of Science”. Science
as Culture 9 (2000), p. 167-99; Holmes Rolston, Genes, Genesis and God: Values
and Their Origins in Natural and Human History. Cambridge: Cambridge University
Press, 1999; Keith Ward, God, Chance and Necessity. Oxford: One World, 1996, p.
105-30.
12 Ver Fulford, “Richard Dawkins Talks Up Atheism
with Messianic Zeal”.
13 Para questões relacionadas à concepção de Deus
defendida por Darwin, ver Cornelius G. Hunter, Darwin’s God: Evolution and the
Problem of Evil. Grand Rapids, MI: Brazos Press, 2001.
14 “Alternative Thought for the Day”; BBC Radio 4,
14 de agosto de 2003.
15 Richard Dawkins. “A Survival Machine”. In John
Brockman (ed.). The Third Culture, p. 75-95. Nova York: Simon & Schuster,
1996.
16 A Devil’s Chaplain, p. 34 [trad. em port.: O
capelão do Diabo].
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