Houve um tempo em que os “deuses” se assentavam em
seus tronos para julgar e governar os homens. Houve um tempo em que o bem era
visto como algo que provinha destes deuses. Era um tempo em que o mal em forma
de tragédias e derrotas era um reflexo de que seus deuses os estavam julgando.
Mas os tempos mudaram. Hoje somos nós que nos assentamos e os julgamos. Somos
nós que definimos o que é justo e o que não é. E aí do deus que cruzar o nosso
caminho.
A justiça é uma palavra que está encravada em
nossas vidas. Todos os dias acordamos e temos manifestações, ou, desejos
concernentes a ela. Começa quando minha esposa deixa a chave do meu carro fora
do lugar que sempre deixo. Eu acho injustiça falar pela milésima vez o lugar
que deve ser deixado. Depois no trânsito, um playboy apressadinho me fecha e eu
fico irado com o desejo de comprar um trator e passar por cima dele com a minha
fúria. É injusto que este delinqüente fique impune fazendo estes atropelos,
principalmente se isto for com a minha pessoa. Depois é na fila do banco. Um
certo folgado vem com seu terno e gravata, e simplesmente decide que sua vida é
mais importante que a minha e fura a fila. Eu me descabelo de ódio. Chego em casa
e ligo a TV. Os telejornais denunciam o tempo todo a injustiça. Fico indignado
com os políticos ladrões, o estuprador de crianças, a impunidade de alguns
crimes. Enfim, durmo com sede de justiça em minha mente. De vez em quando vemos
alguns destes políticos indo para a prisão, vemos estupradores sendo presos (já
sabemos qual o seu fim na cadeia), e a impunidade de alguma forma recebendo a
devida justiça. Naquele dia, o meu coração descansa com minha sede de justiça
saciada. Em fim, justiça permeia nossa visão da vida.
Mas também somos seres que amam, que perdoam, que
relevam. Seres apaixonados pela vida. E sempre que algo sai dos trilhos, dentro
de cada um de nós, se acende uma luz dizendo: “Há algo errado!“. Há o desejo
inerente que aquela situação volte ao “normal”, que a vida volte para os
trilhos da felicidade e do sonho de que tudo seja perfeito. Nas palavras de
Renato Russo: “Tudo é dor. E toda a dor vem do desejo de não sentirmos dor”.
Todo o grito de justiça explicitamente diz que o contrário está fora dos
trilhos.
É este senso de justiça que nos faz olhar para a
história bíblica e julgarmos a forma como o Deus que a Bíblia revela se
relaciona com sua criação. Por isso hoje “é” Deus quem se achega diante de nós
algemado e atento a nossa discordância da forma como rege o Seu Universo. Como
diz certa música:
“me desculpe
pelo sol
como eu
poderia saber que você iria queimar?
e me desculpe
pela lua
como eu
poderia saber que você iria desaprovar?
e eu nunca
mais vou cometer o mesmo erro
a próxima vez
que eu criar o universo eu vou me assegurar que nós nos comuniquemos no
percurso...
me desculpe
pelo mundo
como eu
poderia saber que você levaria isso tão à mal?
e eu nunca
mais vou cometer o mesmo erro
então se você
está procurando por um bode expiatório porque não tenta a raça humana
inteira?...
e eu nunca
mais vou cometer o mesmo erro
a próxima vez
que eu criar o universo eu vou me assegurar que você participe
por via das
dúvidas”
(Letra: “Better off Dead” do album “Stranger than a
fiction” da banda Bad Religion)
Alguns tentam se desviar do desconcertante conflito
entre a nossa justiça e a justiça que aparentemente não provinha dEle. Pois
como conciliar o Deus “genocida” do AT com o Deus de amor em Cristo no NT?
Desta forma, alguns como Cowles simplesmente resolve o problema negando que o
AT na sua totalidade seja de fato a revelação de quem é Deus. Por isso, quando
Deus manda Saul matar todo mundo, inclusive criançinhas, a forma de não lidar
com esta dificuldade, é simplesmente negar que foi Deus de fato quem mandou.
Aquilo foi um equívoco, e o problema está resolvido. Por mais que esta decisão
implicará numa relativização do AT, deixando-o praticamente entregue para que
cada um tome para si aquilo que achar que deve ignorando o que não achar que
deve. Ignoram este perigo para satisfazer o senso de justiça humano. Tudo é
feito em nome de uma reducionista interpretação da revelação que o NT traz
acerca de Deus.
Longe de fugir do conflito, eu proponho que o tema
“Deus mandou matar?”, deve ser lido a partir de uma leitura total da revelação
bíblica. Proponho contrastarmos os atos soberanos de Deus com o nosso senso
humano de justiça, e verificarmos então até onde os dois estão de acordo.
• O primeiro contraste que encontramos na Bíblia é
que o homem peca e Deus dá aos homem uma segunda chance. Porém, em contraste a
isto, não temos uma revelação bíblica que nos diz que os anjos depois de caídos
tem uma segunda chance ao arrependimento. Aos homens foi dado uma segunda
chance, porém, aparentemente, os anjos não tiveram o mesmo julgamento. Isto é
justo?
• Quando Adão pecou, todos nós pecamos. Mas, em que
ponto eu escolhi? Onde em algum momento na minha vida eu escolhi nascer um
pecador destinado ao inferno? É justo Adão pecar e eu ser incluído nesta
escolha?
• Quando Deus mandou o dilúvio sobre a terra,
apenas uma família se salvou. Milhares de crianças morreram afogados pelas
águas sem ter a chance de se salvarem. Por que Noé não levou junto com ele na
arca pelo menos as criançinhas? Isto é justo?
• Quando Deus destrói Sodoma e Gomorra, havia
centenas de crianças naquelas duas cidades. É justo Deus mandar fogo sobre
crianças inocentes?
E por aí segue a lista imensa de atos soberanos de
juízo divino que o AT revela acerca de Deus. São atos soberanos que afrontam
diretamente a nossa visão de justiça principalmente quando isto envolve
criancinhas indefesas que não tiveram oportunidade de escolha.
As guerras bíblicas e os atos soberanos de justiça
divina atravessam toda a revelação do AT. Se inicia com a queda dos anjos e dos
homens. Com o primeiro assassinato na pessoa de Caim. O dilúvio. O socorro de
Abraão ao seu sobrinho Ló. A destruição de Sodoma e Gomorra. O conflito entre
Jacó e os Siquemitas. O conflito entre Deus e faraó. A conquista de Canaã. As
derrotas de Israel. Os anúncios proféticos de juízo que Deus traria as nações
pagãs e inclusive Israel. Enfim, conflitos entre três agentes:
* Ora apenas Deus contra os pagãos;
* Ora Deus e Israel contra os pagãos;
* Ora Deus contra Israel que se alcançava aos
pagãos;
* Ora Deus e os pagãos contra Israel.
* Ora apenas Deus contra Israel quando pecava por
si só.
Enfim, uma relação existencial em que implicava que
o Criador trazia seu juízo aos homens ora sem nenhum agente de cooperação, e
isto implicava tanto para Israel quanto para os pagãos; ora usando Israel para
levar juízo aos pagãos; e ora usando os pagãos para levar juízo à Israel.
Cada uma destas guerras trazia sobre si o governo e
a soberania divina. Deus, além destas guerras fazia uso de meio catastróficos
como o dilúvio, terremotos, pragas, serpentes, e fogo que descia do céu para
consumir aqueles que eram alvos de seu juízo. Por isso em alguns momentos
Israel gritou guerra em nome de Deus e venceu. Porém em alguns casos gritou
guerra em nome de Deus e perdeu porque Deus não compactuou com seus erros. Em
alguns casos, nações pagãs declaram guerra a Israel em nome de seus deuses,
porém nos bastidores havia o Único Deus guerreando por meio destes contra
Israel.
A questão é: “Deus mandou matar?”. Eu responderia
com outra pergunta: Por que não? Não foi Deus quem mandou na lei que todo o
adúltero, feiticeiro, necromante, deveria ser apedrejado e morto? Não foi Deus
quem mandou Elias matar os sacerdotes de Baal? Não foi Deus quem usou Sansão
para matar os filisteus? Não foi Deus quem usou os juízes para exercer juízo
por meio da força? Não foi Deus quem deu a vitória a Davi sobre Golias, e este
decepou a cabeça de Golias sem misericórdia? E por aí segue a lista imensa de
exemplos bíblicos de intervenção divina por meio humanos de trazer juízo.
É fato que Deus no AT julgou os homens por meios
imediatos ou os advertiu por meio profético que todo o pecado humano deve ser
julgado. Em alguns casos houve o extermínio parcial e em outros casos foi
total.
Porém, em Cristo, aparentemente as coisas mudaram
de ótica. Pelo menos do ponto de vista de que Deus ainda ordena explicitamente
que homens em seu nome exerçam juízo fazendo uso de guerras. Mas perdura uma
questão: Deus ainda julga as nações? Será que não? Uma
vez que cremos estar encerrado o Canon e a
revelação de Deus de forma escrita ao homem, não temos como afirmar isto de
forma canônica a não ser especulativa.
Em Cristo, não há mais uma nação e sim um povo de
diversas nacionalidades que compõe a “nação” cristã. Os cristãos de diversas
nacionalidades compõem o povo de Deus. Israel se tornou uma nação anti-cristã,
e nações pagãs do passado hoje embandeiram a fé cristã.
A leitura que fazemos do passado
veterotestamentário, deve ser feita na mesma proporção, em que aqueles que se
relacionaram naquele contexto histórico com Deus, o faziam de tais tragédias,
catástrofes, guerras e juízos divino. Não estávamos lá. Foram basicamente oito
mil anos de história até o advento do Messias neste mundo. Se hoje uma nação
vizinha invadisse nosso país e matasse nossos filhos e violentasse nossas
mulheres, nossa visão destas cenas de horror seria outra. Os homens de Israel
não violentavam mulheres, mas as matavam juntamente com seus filhos. Deus
julgava por meio da espada. Não somente por este meio, mas também por este
meio.
O que nos incomoda não é tanto o fato de Deus
julgar, mas, o fato dEle ter feito por meio de homens. Mas, nós nos esquecemos
da Lei que dizia “Olho por olho...” e isto denotava que Deus havia dado também
ao homem o direito legal de fazer justiça pelas próprias mãos em alguns casos.
Com o advento do Messias o NT nos traz outra
realidade. Primeiro porque a condição judaica não era mais a mesma do AT.
Israel era uma nação oprimida pelo império Romano e estava debaixo de pelo
menos 300 anos de silêncio profético. Deus simplesmente havia se calado. Israel
não operava mais juízo algum na história. Até mesmo porque sua condição era
fruto do juízo de Deus sobre eles por meio dos impérios que os dispersaram.
Desde os babilônicos, gregos e agora os romanos. Israel definitivamente e até
os dias de hoje nunca mais exerceu poderio bélico para impor juízo sobre outras
nações. Deus simplesmente ampliou os limites de Seu Reino e o confiou a sua
Igreja.
Porém a igreja, neste caso, também não teve,
diretamente da parte do ensino, tanto de Jesus, quanto de seus apóstolos e
escritores neotestamentários, álibi para exercer juízo por meio da força.
Apesar de termos o caso de Ananias e safira, onde o Espírito Santo tratou de
maneira imediata um pecado, não temos mais da parte dEle liberação para matar
em nome dEle. As cruzadas foram embasadas no ensino veterotestamentário. A
alegação era de que a igreja agora era o Israel de Deus e, portanto a
responsável para exercer juízo sobre as nações pagãs.
Apesar de discordar da forma como as cruzadas
ocorreram, houve questões que foram por meio delas conquistadas. O evangelho
chegou por meio da espada a lugares que talvez não chegasse de outra forma.
Mas, são apenas suposições. Eu indico a leitura da série: “Uma história
ilustrada do cristianismo” de Justo Gonzáles, onde retrata também o aspecto
positivo das cruzadas. Também indico o livro de Dinish D´Souza "A Verdade
sobre o cristianismo" onde ele aborda o que seria o mundo hoje se as
nações cristãs não tivessem declarado guerra a Maomé e seus exércitos. O mundo
todo hoje talvez fosse muçulmano. Mas, como disse, apesar de discordar do modo,
houve também pontos positivos. Daí compete a cada um considerar se é de fato ou
não.
Voltando a questão do NT, o fato é que em Cristo, a
igreja se tornou a nação ou Reino de Deus no lugar de Israel. O Silêncio de 300
anos foi rompido pela voz humana do Deus encarnado. A lei não regeria mais o
Reino dEle e sim a Sua graça. Os que estivessem dispostos a caminhar por meio
da Lei deveriam entender que as suas implicações eram de fato condenatórias.
Somente a graça por meio do sacrifício do Filho poderia tirar o homem debaixo
do juízo. Por isso, o conceito de juízo ou não, alcança a sua totalidade na
revelação que Cristo nos traz. Aqueles dentre a humanidade que estão em Cristo
são liberados do juízo que este (O Cristo) trouxe sobre si mesmo. Aos que não
estão em Cristo, ainda permanece a sentença condenatória que somente Deus o
sabe a forma como aplicará o juízo antes da Parousia. Este foi o caso de
Ananias e Safira, de Herodes (comido por vermes), do templo destruído em 70
A.D. ; das igrejas descritas no Apocalipse (neste caso Deus ainda disciplina os
seus).
Concluindo:
Os genocídios advindos da parte de Deus por meios
humanos contrastam o nosso senso de juízo, mas, não a revelação da justiça de
Deus tanto no AT quanto no NT. O advento da Parousia é o exemplo disso. Nela os
homens e mulheres (e talvez crianças) não inseridos em Cristo, sofrerão o
grande juízo do Trono branco que trará de certa forma da parte dEle o juízo
Eterno. Se concordamos ou não com a forma como Deus rege a Sua criação, não é a
questão. Isto não mudará o fato de que Este julgará a humanidade de modo
definitivo segundo a revelação bíblica.
Pipe
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