Olavo de
Carvalho
Se há um Deus onipotente, onisciente e onipresente,
é óbvio que não podemos conhecê-Lo como objeto, ou mesmo como sujeito externo,
mas apenas como fundamento ativo da nossa própria autoconsciência, maximamente
presente como tal no instante mesmo em que esta, tomando posse de si, se
pergunta por Ele. Tal é o método de quem entende do assunto, como Platão,
Aristóteles, Sto. Agostinho, S. Francisco de Sales, os místicos da Filocalia,
Frei Lourenço da Encarnação ou Louis Lavelle.
Quando um Richard Dawkins ou um Daniel Dennett
examinam a questão de um “Ser Supremo” que teria “criado o mundo” e chegam
naturalmente à conclusão de que esse Ser não existe, eles raciocinam como se
estivessem presentes à criação enquanto observadores externos e, pior ainda,
observadores externos de cuja constituição íntima o Deus onipresente tivesse
tido a amabilidade de ausentar-se por instantes para que pudessem observá-Lo de
fora e testemunhar Sua existência ou inexistência. Esse Deus objetivado não
existe nem pode existir, pois é logicamente autocontraditório. Dawkins, Dennett
e tutti quanti têm toda a razão em declará-lo inexistente, pois foram eles
próprios que o inventaram. E ainda, por uma espécie de astúcia inconsciente,
tiveram o cuidado de concebê-lo de tal modo que as provas empíricas da sua
inexistência são, a rigor, infinitas, podendo encontrar-se não somente neste
universo mas em todos os universos possíveis, de vez que a impossibilidade do
autocontraditório é universal em medida máxima e em sentido eminente, não
dependendo da constituição física deste ou de qualquer outro universo.
Se você não “acredita” no Deus da Bíblia, isso não
faz a mínima diferença lógica ou metodológica na sua tentativa de investigar a
existência ou inexistência d’Ele, quando essa tentativa é honesta. Qualquer que
seja o caso, você só pode discutir a existência de um objeto previamente
definido se o discute conforme a definição dada de início e não mudando a
definição no decorrer da conversa, o que equivale a trocar de objeto e discutir
outra coisa. Se Deus é definido como onipotente, onisciente e onipresente, é
desse Deus que você tem de demonstrar a inexistência, e não de um outro deus
qualquer que você mesmo inventou conforme as conveniências do que pretende
provar.
O método dos Dawkins e Dennetts baseia-se num erro
lógico tão primário, tão grotesco, que basta não só para desqualificá-los
intelectualmente nesse domínio em particular, mas para lançar uma sombra de
suspeita sobre o conjunto do que escreveram sobre outros assuntos quaisquer,
embora seja possível que pessoas incompetentes numa questão que julgam
fundamental para toda a humanidade revelem alguma capacidade no trato de
problemas secundários, onde sua sobrecarga emocional é menor.
Longe de poder ser investigado como objeto do mundo
exterior, Deus também é definido na Bíblia como uma pessoa, e como uma pessoa
sui generis que mantém um diálogo íntimo e secreto com cada ser humano e lhe
indica um caminho interior para conhecê-La. Só se você procurar indícios dessa
pessoa no íntimo da sua alma e não os encontrar de maneira alguma, mesmo
seguindo precisamente as indicações dadas na definição, será lícito você
declarar que Deus não existe. Caso contrário você estará proclamando a
inexistência de um outro deus, no que a Bíblia concordará com você integralmente,
com a única diferença de que você imagina, ou finge imaginar, que esse deus é o
da Bíblia.
Quando o inimigo da fé faz um esforço para ater-se
à definição bíblica, ele o faz sempre de maneira parcial e caricata, com
resultados ainda piores do que no argumento da “criação”. Dawkins argumenta
contra a onisciência, perguntando como Deus poderia estar consciente de todos
os pensamentos de todos os seres humanos o tempo todo. A pergunta é aí
formulada de maneira absurda, tomando as autoconsciências como objetos que
existissem de per si e questionando a possibilidade de conhecer todos ao mesmo
tempo ex post facto. Mas a autoconsciência não é um objeto. É um poder
vacilante, que se constitui e se conquista a si mesmo na medida em que se
pergunta pelo seu próprio fundamento e, não o encontrando dentro de seus
próprios limites, é levado a abrir-se para mais e mais consciência, até
desembocar numa fonte que transcende o universo da sua experiência e notar que
dessa fonte, inatingível em si mesma, provém, de maneira repetidamente
comprovável, a sua força de intensificar-se a si próprio. Dez linhas de Louis
Lavelle sobre este assunto, ou o parágrafo em que Aristóteles define Deus como
noesis noeseos, a autoconsciência da autoconsciência, valem mais do que todas
as obras que Dawkins e Dennett poderiam escrever ao longo de infinitas
existências terrestres. Um Deus que desde fora “observasse” todas as
consciências é um personagem de história da carochinha, especialmente inventado
para provar sua própria inexistência. Em vez de perguntar como esse deus seria
possível, sabendo de antemão que é impossível, o filósofo habilitado parte da
pergunta contrária: como é possível a autoconsciência? Deus não conhece a
autoconsciência como observador externo, mas como fundamento transcendente da
sua possibilidade de existência. Mas você só percebe isso se, em vez de brincar
de lógica com conceitos inventados, investiga a coisa seriamente desde a sua
própria experiência interior, com a maturidade de um filósofo bem formado e um
extenso conhecimento do status quaestionis.
O que mata a filosofia no mundo de hoje é o
amadorismo, a intromissão de palpiteiros que, ignorando a formulação mesma das
questões que discutem, se deleitam num achismo inconseqüente e pueril, ainda
mais ridículo quando se adorna de um verniz de “ciência”.
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