Farsa que marcou a história dos estudos sobre a
evolução humana comemora 50 anos de seu desmascaramento com exposição londrina
e consenso sobre o autor, Charles Dawson.
Era bom demais para ser verdade. Do alto da testa à
ponta da mandíbula protuberante, o fóssil era o sonho de qualquer
paleoantropólogo britânico e a confirmação de que a terra de Sua Majestade,
afinal, sempre estivera na liderança, até quando se tratava de evolução humana.
Não faltavam nem uma cerca-viva (ao lado da qual o crânio fragmentado foi
descoberto) e um "taco de críquete" feito com o fêmur de um elefante.
Mais inglês do que aquilo, parecia impossível.
O reinado do chamado homem de Piltdown durou mais
de quatro décadas, desde a sua "descoberta" em 1911, mas há 50 anos
as modernas técnicas de datação finalmente conseguiram desmascarar a fraude
mais espetacular e influente (embora não necessariamente a mais bem bolada) da
história da paleoantropologia. Curados da mania nacionalista que os levou a
engolir a farsa, os britânicos relembram Piltdown desde a semana passada com
uma exposição no Museu de História Na tural de Londres. Para a maioria dos
pesquisadores, a identidade do autor da fraude é caso encerrado - Charles
Dawson, embora uma aura de mistério ainda circunde seus métodos, motivações e
cúmplices.
Do ponto de vista dos estudos sobre evolução humana
dos anos 60 em diante, o homem de Piltdown é uma bobagem tão descarada que é
difícil acreditar como alguns dos melhores paleontólogos e antropólogos do
planeta foram capazes de engoli-la. Seu "descobridor", Dawson
(1864-1916), chegou mesmo a ser apelidado de "o mago de Sussex"
(região inglesa onde fica Piltdown) graças ao achado, divulgado oficialmente diante
da Sociedade Geológica do Reino Unido, da qual o advogado era membro, em 18 de
dezembro de 1912.
No entanto, seja lá quem tenha preparado a farsa
(para a maioria dos estudiosos do caso, essa pessoa e o próprio Dawson) teve o
cuidado de se aproveitar dos preconceitos dos cientistas da época e das lacunas
que povoavam o conhecimento sobre evolução humana de então. Basta dizer que só
os fósseis mais recentes de hominídeos (a família a que pertencem todos os
primatas mais próximos dos humanos modernos que dos grandes macacos) já tinham
visto a luz do dia.
Fora da
África
Esses primeiros humanos fósseis eram o Homo erectus
(ou pitecântropo) de Java, na Indonésia, o Homo neanderthalensis franco-alemão
e os primeiros exemplares da humanidade moderna, na época chamados de homens de
Cro-Magnon, franceses. 0 detalhe mais importante dessa lista é que, apesar das
sugestões do naturalista britânico e pai da teoria evolutiva Charles Darwin
(1809-1882), não havia só um ancestral africano para a humanidade. Tudo muito de
acordo com a "ordem natural" das coisas para a Europa imperialista,
sem dúvida: o berço eurasiático da civilização também devia ser a fonte da
humanidade.
A mais poderosa das nações européias, no entanto,
ainda estava de fora dessa partilha do mundo pré-histórico: "Embora o
Reino Unido tivesse antigas ferramentas de pedra, não havia evidências de quem
as pudesse ter construído. Então, surgiu uma expectativa de que os britânicos
conseguissem algo para acompanhar esses outros achados", conta o paleoantropólogo
Chris Stringer, 55, do Museu de História Natural de Londres e organizador da
mostra sobre Piltdown.
Além disso, os momentos evolutivos em que os vários
traços típicos do Homo sapiens apareceram ainda eram completamente obscuros.
Havia quem sustentasse, por exemplo, que desde os primórdios a humanidade
desenvolvera cérebros avantajados. Por isso, grande parte do establishment
cientifico britânico sentiu que suas teorias estavam finalmente comprovadas
pelos fatos quando Dawson e seu colega Arthur Smith Woodward (1864-1944),
curador de zoologia do Museu de História Natural, apresentaram seus
"achados". Eram fragmentos cranianos, uma mandíbula, supostas
ferramentas rudimentares de pedra e ossos de rinoceronte, hipopótamo e castor,
retirados de uma camada de cascalho.
Os restos humanos logo ganharam o nome de
Eoanthropus dawsoni ("homem da aurora de Dawson"), talvez em
homenagem aos "eolitos", como eram chamadas as pedras supostamente
trabalhadas que apareceram em Piltdown e eram comuns em sítios pré-históricos
de todo o Reino Unido. A grossa calota craniana da criatura tinha dimensões
comparáveis às de um humano moderno, mas seu queixo era quase inexistente, e a
mandíbula apresentava uma dentição pouco diferente da de um grande macaco
moderno. A idade estimada para o E. dawsoni era de 500 mil anos.
"Isso se encaixou particularmente com as
idéias preconcebidas de cientistas britânicos como Elliot Smith e Arthur Keith,
para quem o cérebro era a marca da humanidade e tinha se tornado grande no
início da evolução humana", diz Stringer. "Por isso, eles acolheram
os achados de Piltdown." Isso não quer dizer que a oposição tenha
inexistido, ressalva o pesquisador: alguns antropólogos americanos, por
exemplo, questionaram os fósseis desde o começo, sugerindo que uma mandíbula
genuinamente antiga de primata tinha se misturado a um crânio humano mais
recente nos estratos do sítio. Rumores de uma farsa também circularam logo.
"Mas no Reino Unido a maioria dos principais cientistas o apoiou",
conta o paleoantropólogo.
No ano seguinte, enquanto os fósseis eram colocados
em exposição no museu, Dawson e Woodward voltaram ao trabalho em Sussex,
acompanhados pelo paleoantropólogo e padre jesuíta francês Pierre Teilhard de
Chardin (1881-1955), que já tinha auxiliado a dupla na primeira temporada de
escavações. Foi o próprio religioso o responsável por encontrar um canino que
faltava na mandíbula do espécime original, perto de onde ela aparecera antes.
Pouco tempo depois, no entanto, alguma coisa muito
errada aconteceu no sítio original. A escavação acabou revelando um fêmur de
elefante de aparência das mais suspeitas - trabalhado de forma que lembrava
estranhamente um taco de críquete. Aquilo já estava ficando ridículo.
"Seja lá quem tenha plantado o taco, a mensagem era clara: estamos em cima
de vocês e vamos bagunçar seu sitio", afirma Stringer. Na tentativa de
desviar a atenção e o embaraço causados por esse achado, Dawson e Woodward
abriram um novo sítio a 3 km do local original, encontrando em 1915 novos
fragmentos de ossos humanos e de animais da Era Glacial.
O "Mago de Sussex" morreria um ano depois
de septicemia, mas o estrago já estava feito. Para muitos, os fósseis do novo
sitio representavam a prova de que o E. dawsoni não era um indivíduo aberrante,
mas uma espécie genuinamente britânica de hominídeo. Quando o primeiro
ancestral humano da África, o Australopithe cus africanus de Raymond Dart
(1893-1988), foi revelado em 1924, ninguém Ihe deu a menor atenção -o cérebro
era pequeno demais.
Lentamente, no entanto, descobertas em Java e na
África começaram a fazer com que a balança pendesse contra Piltdown. Em 1949, o
geólogo e paleontólogo Kenneth Oakley conseguiu estimar a idade dos restos com
base na taxa de flúor, que ajuda a avaliar idades relativas de dois fosseis do
mesmo local: quanta mais antigo o depósito, mais flúor o fóssil acumula. Os
restos de Piltdown tinham muito menos do elemento do que outros fosseis de
animais na região. Finalmente, em novembro de 1953, uma nova bateria de testes
mostrou que o crânio pertencia a um humano moderno, com não mais que mil anos
de idade, e que a mandíbula viera de um orangotango. Produtos químicos tinham
sido usados para fazer com que ela parecesse fossilizada, e a dentição havia
sido alterada para lembrar mais a de um ser humano que a de um grande macaco.
Culpados e cúmplices Dezenas de pessoas foram
acusadas de envolvimento com a fraude, entre elas Tei lhard de Chardin e ate o
criador de Sherlock Holmes, Sir Arthur Conan Doyle (1859-1930), que vivia perto
de Piltdown e mantinha contato com Dawson. A descoberta de um baú numa torre do
Museu de História Natural de Londres levantou fortes suspeitas também contra
Martin Hinton (1883-1961), assistente voluntário de Woodward na época dos
achados.
Fósseis e ferramentas de pedra guardados no baú
tinham a mesma cor amarronzada do material de Pilt down e haviam sido alterados
com a mesma técnica usada por quem forjou o E. dawsoni. Hinton teria feito isso
para ridicularizar Woodward, que não o ajudara a conseguir financiamento para
continuar seu trabalho.
Para Stringer, no entanto, as evidências ainda
apontam para Dawson. Depois de sua morte, por exemplo, nada mais foi achado em
Piltdown, e uma serie de outras "descobertas" suas - sapos
fossilizados, uma espécie de roedor extinta e uma estátua romana - se revelaram
farsas também. O "mago" tinha, pelo visto, uma queda pela
prestidigitação arqueológica.
Fonte:
Reinaldo José Lopes é escritor free-lancer e
escreveu este artigo para o jornal Folha de S.Paulo, que o publicou em seu
encarte dominical “Mais!”, de 30 de novembro de 2003.
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