quinta-feira, 30 de abril de 2015

Uma defesa do dualismo de substâncias

Richard Swinburne

Resumo: Argumento neste artigo que embora existam muitas maneiras diferentes de descrever o mundo ou algum segmento dele, qualquer maneira que deixe de acarretar logicamente uma separabilidade do corpo e da alma como os dois componentes de cada ser humano conhecido (o corpo sendo uma parte contingente e a alma a parte essencial do homem) deixará de fornecer uma descrição completa do mundo.

1 Definições
Começo com algumas definições estipulativas. Entendo por uma propriedade um universal monádico ou relacional, e por um evento a instanciação de uma propriedade numa substância ou em substâncias (ou em propriedades ou eventos) em um tempo. Qualquer definição de uma substância tende a tomar como provadas as questões filosóficas, mas eu trabalharei com uma definição que, penso, não toma como provado o problema em questão neste artigo. Uma substância é uma coisa (diferente que um evento) que pode (é logicamente possível) existir independentemente de todas as outras coisas daquela categoria metafísica (i.e. de todas as outras substâncias) exceto de suas partes (A noção de uma substância é exatamente esta – que ela pode existir por si mesma sem o suporte de outra substância”. R. Descartes, Replies to the Fourth Set of Objections, in (trans.) J. Cottingham, R. Stoothof e D. Murdoch, The Philosophical Writings of Descartes, 2: 159). Assim mesas, planetas, átomos e seres humanos são substâncias. Ser quadrado, pesar 10 kg, ou ser mais alto que, são propriedades (as primeiras duas são propriedades monádicas, a última é uma propriedade relacional que relaciona duas substâncias). Eventos incluem minha mesa ser quadrada agora, ou John ser mais alto que James em 30 de março de 2001 às 10.00 a.m.

Existem diferentes maneiras de fazer a distinção entre o mental e o físico, mas proponho fazê-la nos termos do que é de maneira privilegiada acessível e público. Existem na literatura outras maneiras de entender a oposição mental/físico, as mais comuns delas são as oposições intencional/não-intencional e ciência física/ciência não física. Exponho isso somente em termos dos eventos. Na primeira abordagem um evento mental é um evento que envolve uma atitude em relação a alguma coisa sob uma descrição – ele está temendo, pensando, acreditando nisto ou naquilo; quando o sujeito necessariamente não teme, não pensa, não acredita em alguma coisa idêntica a isso ou aquilo; um evento físico é um evento diferente de um evento mental. Na segunda abordagem o físico é o que pode ser explicado por meio de uma física estendida, e o mental é o que não pode ser explicado desta forma.

A primeira abordagem tem a conseqüência infeliz de que qualidades como dores e cores não são eventos mentais; contudo, estas qualidades são as causadoras de problemas paradigmáticos para a identidade entre “mente-cérebro”, e devemos considerá-las como mentais se quisermos lidar de alguma maneira com o problema tradicional mente/corpo. A segunda abordagem é desesperadamente vaga, pois é totalmente ininteligível o que constituiria uma ciência que incorporasse a atual física como ainda sendo uma física. Daí minha preferência pela minha maneira de definir as propriedades “mentais” e “físicas”, os eventos, e – de maneira análoga – as substâncias.

Uma propriedade mental é uma propriedade sobre cuja instanciação a substância em que ela é substanciada tem necessariamente acesso privilegiado em todas as ocasiões de sua instanciação, e uma propriedade física é uma propriedade sobre cuja instanciação nela uma substância não tem necessariamente acesso privilegiado em qualquer ocasião de sua instanciação. Alguém tem acesso privilegiado sobre se uma propriedade P é instanciada nele no sentido de que – dado que ele sabe o que é alguma coisa ter P (ou seja, tem o conceito de P) - Agradeço a David Armstrong por mostrar que minha definição original de “acesso privilegiado” sem a cláusula inicial “dado que” tinha a conseqüência de que, como animais e bebês não poderiam descobrir se “estão tendo uma imagem vermelha” etc. instanciada neles porque eles não têm os conceitos necessários para obter conhecimento por introspecção, não poderiam ter acesso privilegiado a essas propriedades; e disso se seguiria que não poderia haver propriedades mentais segundo meu sentido. A cláusula adicional torna o caráter mental de uma propriedade uma questão de se alguém que tem o conceito daquela propriedade tem uma maneira de ter conhecimento a seu respeito que não é disponível aos outros - quaisquer que sejam os meios que os outros têm de descobrir isso, é logicamente possível que ele possa usar, mas ele tem um meio adicional (experienciando-a) que não é logicamente possível que outros possam usar. Uma propriedade mental pura pode então ser definida como uma propriedade cuja instanciação não acarreta a instanciação de uma propriedade física. Um evento mental é um evento sobre cuja instanciação numa substância, aquela substância tem acesso privilegiado; e um evento físico é um evento sobre cuja instanciação numa substância aquela substância não tem acesso privilegiado. Um evento mental puro é um evento que não acarreta a ocorrência de um evento físico. (A maioria dos eventos mentais, mas nem todos, implicam a instanciação de propriedades mentais.) Uma substância mental é uma substância sobre cuja existência aquela substância necessariamente tem acesso privilegiado, e uma substância física é uma substância sobre cuja existência aquela substância necessariamente não tem acesso privilegiado, isto é, uma substância pública. Uma vez que ter acesso privilegiado a algo é isso mesmo uma propriedade mental, e alguém que tem qualquer outra propriedade mental tem a primeira, as substâncias mentais são exatamente aquelas para as quais algumas propriedades mentais são essenciais. Uma substância mental pura é uma substância cuja existência não acarreta a existência de uma substância física. Ora, a história do mundo é a história de uma coisa e depois outra ocorrência de coisas, num sentido de “ocorrência de coisas” que inclui tanto coisas que permanecem idênticas e coisas que mudam. Sugiro que as coisas que ocorrem são eventos no sentido que dou a este termo. Trata-se desta substância que existe por um período de tempo (que pode ser analisada como tendo suas propriedades essenciais), que chega a ter esta propriedade ou relação com outra substância neste ou naquele tempo, que continua a tê-la e então deixa de tê-la. E eu sugiro que não há outras coisas que ocorrem exceto eventos no sentido que dou a este termo. Para conhecer a história do mundo precisamos de uma descrição canônica desses eventos em termos das propriedades, das substâncias e dos tempos envolvidos neles; e estes últimos devem ser discriminados não por meio de quaisquer descrições definidas deles mas por meio de palavras que digam o que eles são – designadores rígidos, mas não simplesmente quaisquer designadores rígidos. Pois alguns designadores rígidos não nos dizem muito acerca do que estamos falando – [o designador] ‘água’ como empregado no século XVIII ou ‘Hesperus’ (a estrela da tarde, que nós agora sabemos ser o planeta Vênus) na própria Grécia antiga, por exemplo. (Dado que alguma coisa é ‘água’, se ela tem a mesma essência (química) que o líquido em nossos rios e mares, então se não sabemos o que essa essência é, como as pessoas não o sabiam no século XVIII, não sabemos muito acerca do que estamos falando. E o mesmo vale para Hesperus se não sabemos do que aquele planeta é feito e, deste modo, se ele é o mesmo planeta que ‘Phosophorus”, a ‘estrela da manhã’.) Precisamos daquilo que eu chamarei de ‘designadores informativos’. Para um designador rígido de uma coisa ser um designador informativo é preciso que alguém que saiba o que a palavra significa (ou seja, que tenha o conhecimento lingüístico do como usá-la) conheça um certo conjunto de condições necessárias e suficientes (em qualquer mundo possível) para uma coisa ser aquela coisa (quer ele possa ou não determinar tais condições em palavras, ou possa de fato alguma vez descobrir que tais condições são satisfeitas). Conhecer essas condições para a aplicação de um designador é ser capaz (quando posicionado de maneira favorável, com as faculdades funcionando perfeitamente e não sujeito à ilusão) de reconhecer quando aplicá-lo e quando não aplicá-lo e ser capaz de fazer simples inferências sobre sua aplicação e a partir de sua aplicação Mais precisamente, se você tem conhecimento lingüístico das regras para usar um designador informativo de um objeto (substância, propriedade, ou o que quer que seja), então você pode aplicá-lo corretamente a qualquer objeto se e somente se (1) você está favoravelmente posicionado, (2) suas faculdades estão funcionando perfeitamente, e (3) você acredita que (1) e (2). Assim, ‘verde’ ser um designador informativo significa que alguém que sabe o que ‘verde’ significa pode aplicá-lo a um objeto de maneira correta quando (1) a luz é luz do dia e ele não está muito longe do objeto, (2) seus olhos estão funcionando perfeitamente, e ele acredita que (1) e (2). Alguém está sujeito à ilusão se ou {(1) e (2)} e não-(3) ou {ou não-(1) ou não-(2)} e (3). Por oposição, (as palavras designadoras tendo seus significados pré-modernos) por mais favoravelmente posicionado que você se encontre e por mais bem que suas faculdades estejam funcionando, você pode não ser capaz de identificar corretamente algum líquido em nossos rios e mares como “água”, ou algum planeta no céu ao entardecer como ‘Hesperus’. Assim “vermelho” é um designador informativo de uma propriedade, da qual “a verdadeira cor de meu primeiro livro” é um simples designador rígido não-informativo. Posso saber o que “vermelho” significa no sentido de ser capaz de identificar coisas como vermelhas, e fazer simples inferências usando a palavra sem saber que coisas em nosso mundo são vermelhas. A competência para usar a palavra “vermelho” pode existir sem o conhecimento de que coisas são realmente vermelhas. Mas saber como usar a expressão “tem a verdadeira cor de meu primeiro livro” não me habilita a reconhecer coisas diferentes de meu primeiro livro como tendo a cor de meu primeiro livro. Quando posso designar uma propriedade (ou o que quer que seja) por meio de um designador informativo, então eu possuo o conceito daquela propriedade; eu sei perfeitamente o que estou dizendo acerca de um objeto quando digo que ele tem aquela propriedade. Mesmo que, quando sujeito à ilusão, eu confunda um objeto como vermelho quando ele não é vermelho, eu sei o que estou dizendo quando digo que ele é vermelho. Estou dizendo que ele tem a cor que contemplaria desta maneira se as circunstâncias fossem normais. Portanto, se nós designamos uma propriedade (ou o que quer que seja) por meio de um designador informativo nós conhecemos a essência do que está envolvido.

Há muitos critérios diferentes para identificar evento, propriedade ou substância, defendidos na literatura filosófica, e precisamos de um metacritério para escolher entres eles. Nosso presente interesse sendo o de oferecer uma descrição completa do mundo, sugiro como um metacritério que nós individualizemos propriedades, substâncias e tempos de tal maneira que se alguém conhece quais propriedades (designadas de maneira informativa) foram instanciadas em quais substâncias (designadas de maneira informativa), eles sabem (ou podem deduzir), tudo o que aconteceu. Uma descrição canônica de um evento dirá quais propriedades, substâncias e tempos ela envolve, discriminando-os por meio de designadores informativos – e, conjuntamente, as propriedades, tempos, e substâncias envolvidas formarão um designador informativo daquele evento. Dois eventos são idênticos se suas descrições canônicas são idênticas ou se acarretam mutuamente. Então será o caso que alguém que sabe todos os eventos que aconteceram sob suas descrições canônicas sabe tudo o que aconteceu (e alguém que sabe todos os eventos que aconteceram sob suas descrições canônicas em alguma região espaço-temporal sabe tudo o que aconteceu naquela região). Para transmitir a uma pessoa o conhecimento de tudo o que aconteceu será suficiente (supondo que aquela pessoa tem suficiente competência lógica) listar alguns dos muitos diferentes subconjuntos de todos os eventos. Pois a ocorrência de alguns eventos acarreta a ocorrência de outros eventos. Há um evento de meu caminhar de A até B das 09.30 até às 09.45 min., outro evento de meu caminhar lentamente das 09.30 min às 09.45 min, e um terceiro evento de meu caminhar lentamente de A até B das 9.30 às 9.45. Mas o terceiro evento é “nada mais que” os primeiros dois eventos. Para generalizar – não há nada mais sobre a história do mundo (ou o mundo numa região) do que um subconjunto de eventos cujas descrições canônicas acarretam as de todos os eventos; e nada mais nada menos que algum subconjunto mínimo fará isso. Mas então, quais são os critérios de identidade para as propriedades e as substâncias?

2. Propriedades
Comecemos com as propriedades. Para satisfazer meu metacritério é necessário e suficiente que cada propriedade nomeada por meio de designadores informativos que não são logicamente equivalentes conte como uma propriedade diferente; não obstante, visto que algumas acarretam outras, não precisaremos mencioná-las todas a fim de oferecer um relato completo do mundo. É importante distinguir uma descrição de uma propriedade P em termos de alguma propriedade que ele possui, de um designador rígido (informativo ou não-informativo) de P. “Verde” é um designador informativo da propriedade de ser verde; ele se aplica a ela em todos os mundos possíveis, e uma pessoa que sabe o que “verde” significa sabe a que um objeto deve ser semelhante para ser verde. “A cor favorita de Amanda” ou “a cor da grama” pode funcionar como descrições da propriedade verde em termos de suas propriedades, possivelmente (em nosso mundo) somente identificando descrições. Essas palavras podem ser usadas para descrever a propriedade de ser verde ao designar de maneira informativa uma propriedade diferente – a propriedade de ser a cor favorita de Amanda ou a propriedade de ser da mesma cor da grama – cujas propriedades a propriedade de ser verde possui. “Verde é a cor favorita de Amanda” é então uma sentença com sujeito-predicado onde “A cor favorita de Amanda” designa de maneira informativa a propriedade de ser a cor favorita de Amanda e desse modo (em nosso mundo) descreve a propriedade verde. Ela diz que a propriedade “verde” tem, ela mesma, a propriedade de ser a cor favorita de Amanda. Se ela afirmasse (de maneira incomum) existir um enunciado de identidade entre as duas propriedades designadas de maneira informativa, ela seria falsa. Mas qualquer nome de propriedade pode ser convertido num designador rígido não informativo de outra propriedade que tem a primeira propriedade. “A cor favorita de Amanda” pode ser usada para designar de maneira rígida aquela cor que no mundo real é a cor favorita de Amanda. Neste caso “Verde é a cor favorita de Amanda” será um enunciado (verdadeiro) de identidade. O expediente da rigidificação nos permite converter qualquer descrição exclusivamente identificadora de alguma coisa, incluindo uma propriedade, em um designador rígido daquela coisa. Mas não a converte num designador informativo daquela coisa. Pois – para dar outro exemplo – alguém que sabe o que o predicado rigidificado “a cor da grama” significa não precisa ter nenhuma competência para identificar qualquer propriedade de cor (diferente que aquela da grama) como sendo aquela propriedade de cor – pois ele pode nunca ter visto grama.

Para retornar ao tema principal – segue-se das propriedades serem idênticas se e somente se elas têm designadores informativos logicamente equivalentes, que propriedades mentais como “ter dor” e “ver vermelho” não são as mesmas propriedades que algumas propriedades cerebrais. E, de eventos serem os mesmos eventos se e somente se suas descrições canônicas envolvem as mesmas propriedades, substâncias e tempos ou se se acarretam mutuamente, que eventos mentais como eu estar com dor não são idênticos a eventos cerebrais tais como a irritação de meus nervos-C. E em minha opinião o mesmo vale para os eventos intencionais tais como eu ter tais e tais crenças, desejos e objetivos. De modo mais geral, uma vez que os eventos mentais são eventos aos quais a substância envolvida tem acesso privilegiado, e os eventos físicos são eventos aos quais a substância não tem acesso privilegiado, nenhum evento físico pode ser idêntico a qualquer evento mental nem pode acarretá-lo. Alguns eventos mentais acarretam a ocorrência de eventos físicos (e.g. “Minha intenção de movimentar meu braço” acarreta “o movimento de meu braço”). Mas alguns não acarretam – “meu pensamento sobre filosofia” é um evento mental puro. E o evento mental puro não pode ser inteiramente omitido de uma descrição completa do mundo. O dualismo de propriedades é um aspecto do mundo que inevitavelmente chama nossa atenção se tentamos fornecer uma descrição completa deste mundo.

3 Substâncias: considerações gerais
Volto-me agora para as substâncias. Para uma substância num tempo t2 ser a mesma substância que uma substância num tempo anterior t1, dois tipos de critérios devem ser satisfeitos. Primeiro, as duas substâncias devem ter as propriedades essenciais das mesmas espécies de substâncias a que elas pertencem. Exatamente como existem diferentes maneiras de dividir a história do mundo em eventos, do mesmo modo existem diferentes maneiras de dividir o mundo em espécies de substâncias, algumas delas nos permitiriam fornecer uma descrição verdadeira e completa do mundo. Suponha que eu tenho um carro que eu converto num barco. Posso pensar carros como essencialmente carros. Neste caso uma substância (um carro) deixou de existir e tornou-se outra substância (um barco). Ou posso pensar um carro como essencialmente um veículo a motor, e neste caso ele continuou a existir embora com diferentes (não essenciais) propriedades. Todas as três substâncias existem – o carro que é essencialmente um carro, o barco que é essencialmente um barco, e o veículo a motor que é essencialmente um veículo a motor. Não obstante, posso contar a história completa do mundo seja ao contar a história do veículo a motor, seja ao contar a história do carro ou a do barco.

A segunda condição para uma substância num tempo ser idêntica a uma substância em outro tempo é que as duas substâncias sejam compostas basicamente das mesmas partes, na medida em que esta deve suportar uma variação em relação ao gênero de substância. Pelo menos cinco tipos de coisas têm sido chamadas “substâncias”: coisas simples, organismos, artefatos, agregados mereológicos e objetos gerrymandered (tais como a gaveta do lado direito de minha escrivaninha juntamente com o planeta Vênus). Não obstante a opinião de alguns de que somente algumas dessas são realmente substâncias, meu metacritério não fornece nenhuma justificação para semelhante restrição arbitrária. Para cada um desses gêneros de substâncias existe seu próprio tipo de critério de identidade, variando com o grau de substituição ou rearranjo de partes que é compatível com a existência contínua da substância (e.g. para um agregado mereológico nenhuma substituição é possível; para artefatos como um carro, um barco, ou um veículo a motor é possível uma grande quantidade de substituição). Uma história completa do mundo precisará mencionar somente certos gêneros de substâncias – e.g. se ela nos conta a história de todas as partículas fundamentais que poderiam ser suficientes (se esquecermos por alguns parágrafos os problemas óbvios que surgem das substâncias terem propriedades mentais). Não há mais nada em relação a qualquer substância que as suas partes, e a história da substância é a história de suas partes. Poderia às vezes ser mais simples do ponto de vista explicativo se alguém considerasse substâncias maiores, e.g. organismos, em vez de suas partes como as substâncias nos termos das quais delinear a história do mundo; mas as propriedades causais de substâncias maiores, incluindo os organismos, são apenas as propriedades causais de suas partes, ainda que as últimas tenham propriedades causais tais que quando combinadas com outras partes elas se comportam de maneiras diferentes das maneiras como se comportam separadamente. De maneira alternativa, em vez de contar somente a história das partículas fundamentais, devemos incluir em nossa história do mundo os organismos e os artefatos, dizendo quando eles ganham ou perdem partes, ou suas partes internas foram rearranjadas. Poderíamos então ter de descrever a história das partículas fundamentais somente na medida em que elas não formam partes imutáveis dos organismos ou artefatos.

Ser a mesma parte pode ela mesma ser uma questão de ter todas as mesmas subpartes, e assim por diante; ou alguma substituição das subpartes pode ser admitida, mas no fim – se quisermos trabalhar com um critério de identidade claro que permita uma descrição completa do mundo – devemos alcançar um nível em que (por definição) nenhuma substituição seja possível se a subparte for considerada a mesma subparte, um nível que eu chamarei de partes elementares. Ser a mesma parte elementar envolverá, como no tocante a qualquer substância, ter as propriedades essenciais características da espécie – ser este átomo de hidrogênio envolverá ter certa massa atômica, número, etc., Envolverá também alguma coisa diferente, pois deve ser a mesma marca daquela espécie – um princípio de individuação.

O que aquele princípio é depende crucialmente de que espécies de coisas as substâncias são. Uma concepção é que as substâncias são simples feixes de propriedades co-instanciadas. A concepção alternativa é que algumas substâncias tem ecceidade - Para uma abordagem mais detalhada da ecceidade e de qual seria a evidência de que os objetos materiais têm ou não têm ecceidade, ver meu artigo “Thisness”, Australasian Journal of Philosophy, 73 (1995), 389-400. Este artigo tem sido objeto de algumas críticas detalhadas por parte de John O’Leary-Hawthorne e J. A. Cover in “Framing the Thisness Issue”, Australasian Journal of Philosophy 75 (1997), 102-8. Uma crítica completamente injustificada que ele faz é que (p. 104) meu “princípio diz respeito à duplicação solo numero intra-mundo” e que “é surpreendente que Swinburne não apresente explicitamente versões intra-mundo de seu princípio”. Entretanto, eu deixo explicitamente claro (p. 390) que todos os princípios que eu discuti (incluindo, portanto, aquele princípio nos termos dos quais eu defini ecceidade), “dizem respeito não meramente a identidade de indivíduos num dado mundo, mas em todos os mundos possíveis” - Uma substância tem ecceidade se pudesse existir em vez dela (ou tanto quanto ela) uma substância diferente que tivesse todas as mesmas propriedades que ela, incluindo as propriedades relacionadas ao passado e ao futuro tais como continuidade espaço-temporal de uma substância tendo tais e tais propriedades monádicas.

Se nenhuma substância tem ecceidade, então a história do mundo consistirá de feixes de propriedades co-instanciadas tendo propriedades adicionais, incluindo relações espaço-temporais com os feixes anteriores, passando a existir e deixando de existir, e causando a subseqüente existência e as propriedades dos outros feixes. Existem muitas maneiras diferentes (igualmente bem justificadas por meio de nosso metacritério inicial para um sistema de categorias metafísicas) de dividir o mundo em substâncias no tempo, conforme o tamanho do feixe e quais membros do feixe são considerados essenciais para a substância que eles formam. E, conforme quais membros do feixe são considerados essenciais, também haveria diferentes maneiras de determinar a continuidade da substância no tempo. As partes elementares também serão individuadas por propriedades. Obviamente tal propriedade para individuar partes que ocupam espaço é a continuidade espaço-temporal de uma substância que tem as mesmas propriedades essenciais das espécies, conjugada talvez com a continuidade causal (ou seja, a primeira substância causando a existência das substâncias posteriores); para as substâncias não-espaciais, a continuidade temporal mais a continuidade causal parecem ser as condições óbvias. E necessitamos de uma única condição para assegurar que no máximo uma substância posterior a uma dada substância que satisfaz ambas estas condições é a substância original. Mas existem novamente maneiras alternativas em que essas condições poderiam ser detalhadas, uma das quais nos permitiria contar toda a história do mundo. Se considerarmos a continuidade espaço-temporal necessária para a identidade das substâncias no tempo, então teremos que dizer que se um elétron desaparece de uma órbita e causa o aparecimento de um elétron em outra órbita sem existir continuidade espaço-temporal entre eles, eles são elétrons diferentes. Contudo, se insistirmos apenas na continuidade causal, então eles serão o mesmo elétron. Mas nós podemos contar toda a história do mundo de ambas as maneiras, e ambas as histórias serão verdadeiras; elétrons de ambos os tipos existirão.

Se, entretanto, algumas substâncias têm ecceidade, uma história completa do mundo terá de descrever as continuidades não meramente dos feixes de propriedades co-instanciadas, mas da ecceidade que subjaz a certos feixes (ou seja, do que é que faz a diferença entre dois feixes das mesmas propriedades com, qualitativamente, a mesma história). Desse modo, deve ser uma condição necessária das partes elementares das substâncias serem idênticas que elas tenham a mesma eccedidade - Se as partes simples têm a mesma ecceidade, então a substância composta delas terá uma ecceidade constituída por estas e vice-versa. Eu, por conseguinte, rejeito uma visão que Galois chama “haecceitism forte”, a visão de que dois objetos (O num mundo m, e O* num mundo m*) poderiam não obstante ser diferentes, mesmo se eles tivessem absolutamente as mesmas propriedades e fossem compostos de constituintes idênticos. Ver A. Galois, Occasions of Identity, Clarendon Press, 1998, p. 250-51.) - . Para aquelas substâncias físicas que são objetos materiais, a ecceidade é ser feita da mesma matéria. Nós temos então a teoria hilemórfica de que a identidade de um objeto material requer a identidade das propriedades essenciais das espécies e a identidade da matéria subjacente. Neste caso, se (e somente se) o elétron na nova órbita é composto da mesma matéria que o velho elétron, ele é o velho elétron. A continuidade espaço-temporal agora não é mais uma condição independente para uma substância física continuar a existir, mas provavelmente evidência (falível) de que a mesma matéria continuou a existir; e, assim, dado que as outras propriedades essenciais das espécies arbitrariamente escolhidas são preservadas, que os mesmos objetos materiais existem. A continuidade espaço-temporal é evidência da identidade da matéria na medida em que é a melhor (i.e. a mais provável) teoria física de como o comportamento da matéria tem a conseqüência de que ela se move espacialmente em trajetórias contínuas.

Não sabemos se os objetos materiais inanimados do nosso mundo têm ecceidade, e a esse respeito não sabemos o que constituiria uma descrição completa do nosso mundo. Se eles têm ecceidade, então nem todo relato do mundo que descreve os modelos de distribuição das propriedades no mundo será um relato correto. Precisamos de um relato que individualize as partes elementares dos objetos materiais inanimados (discriminadas enquanto tais de uma maneira clara) sendo a mesma substância só se eles têm a mesma matéria. Então agregados mereológicos terão de ter a mesma matéria durante toda sua existência, enquanto que os organismos podem gradualmente substituir a matéria.

Fornecer a história completa do mundo, aleguei, envolve listar todos os eventos de um subconjunto que acarreta todos os eventos que têm acontecido sob suas descrições canônicas. Vimos no caso das propriedades que isso envolve discriminar as propriedades envolvidas por meio de designadores informativos. E seguramente nós necessitamos para designar de maneira informativa também as substâncias – simplesmente fornecer uma descrição delas, ainda que uma descrição rigidificada, que nos dissesse o que seria verde, quadrado ou sentir dor. Designar de maneira informativa uma propriedade envolve conhecer certo conjunto de condições necessárias e suficientes para alguma coisa ser aquela propriedade. Considerações similares devem ser aplicadas às substâncias. Mas aqui temos de notar que embora conheçamos designadores informativos para muitas propriedades, não conhecemos designadores informativos para muitas substâncias. Muitas vezes não conhecemos as condições necessárias e suficientes para uma substância ser aquela substância; pois muitas vezes não sabemos o que constituiria uma futura substância ou uma substância num outro mundo aquela substância. Uma das principais razões para nossa incapacidade de designar de maneira informativa as substâncias é que não sabemos a respeito de algumas espécies de substâncias, e em particular dos objetos materiais inanimados, se eles têm ou não ecceidade (e, assim, por exemplo, se devem ser individuados em parte por sua matéria subjacente) ou se devem ser individuados somente por meio das propriedades, incluindo as propriedades (espaço temporal e/ou outras) de continuidade.

4. Substâncias Mentais
Suponha agora que nenhuma substância tem ecceidade, e, portanto, que a opinião de que todas as substâncias são feixes seja correta. Substâncias mentais são aquelas substâncias que têm essencialmente propriedades mentais. Por conseguinte, se há substâncias mentais depende de como um feixe reúne feixes de propriedades em substâncias. Propriedades mentais com partes físicas (tal como a propriedade de intencionalmente levantar um dos braços) são naturalmente consideradas como pertencendo à substância a qual a parte física pertence. Mas alguém pode colocar propriedades mentais puras (tal como a propriedade de tentar levantar um dos braços) ou no mesmo feixe que a propriedade física a qual ela é mais estreitamente relacionada causalmente – aquela que é a causa dela ser instanciada ou cuja instanciação é causada por ela, - (Como proposto, por exemplo, por Jerome Shaffer, “Could Mental Processes be Brain Processes”, Journal of Philosophy 58 (1961) - ou – seguindo Hume - “A verdadeira idéia de uma mente humana é a que a considera um sistema de diferentes percepções ou diferentes existências, encadeadas pela relação de causa e efeito, e que mutuamente produzem, destroem, influenciam e modificam-se umas às outras”. David Hume, Tratado da Natureza Humana, 1.4.6. - alguém pode colocar as propriedades mentais puras num feixe de outras propriedades mentais puras com cuja instanciação ele é relacionado causalmente (e talvez também relacionado pelas relações de similaridade e aparente memória). No modelo Humeano haveria, claramente, substâncias mentais, pois alguns feixes de propriedades seriam individuados por suas propriedades mentais. Parece, entretanto, que no modelo não-Humeano alguém poderia individuar substâncias somente por meio de suas propriedades físicas e considerar as propriedades mentais como simplesmente membros contingentes dos feixes, e nesse caso as únicas substâncias seriam as substâncias físicas. Alternativamente alguém poderia individuar substâncias pelo menos parcialmente em termos de propriedades mentais, e neste caso haveria substâncias mentais. Ambas as maneiras de descrever o mundo forneceriam uma descrição completa. Então torna-se uma questão arbitrária dizer que há substâncias mentais.

Contrariamente a este modelo, entretanto, não é possível ter uma descrição completa do mundo em que todas as substâncias sejam individuadas somente por meio das propriedades físicas. Pois é um dado evidente da experiência que eventos mentais conscientes de diferentes tipos (sensações visuais, sensações auditivas, etc.) são co-experienciados, isto é, pertencem à mesma substância. Qualquer descrição do mundo que tenha como conseqüência que eventos co-experienciados não pertencem à mesma substância será uma descrição falsa. Portanto, deve haver substâncias cuja identidade é constituída em parte por ser a substância à qual alguma série de eventos mentais co-experienciados pertence. Se essas substâncias são também substâncias às quais os eventos físicos pertencem e que são causalmente mais diretamente conectados a esses eventos mentais – permitam-me chamá-los de correlatos físicos dos eventos mentais, então seus limites espaciais num tempo e num outro tempo nunca podem ser mais próximos que aqueles dos correlatos físicos dos eventos co-experienciados. A identidade da substância é assim constituída por uma propriedade mental, de modo que seus limites não são mais próximos que os limites dos correlatos físicos daquilo que eu co-experimento. Nós não podermos dividir o mundo é uma maneira arbitrária de individuar substâncias somente por meio de propriedades físicas, e supor que as propriedades mentais são meramente propriedades contingentes dessas substâncias. Pois ainda que (embora pareça não ser o caso empiricamente) a base do cérebro, por exemplo, as minhas sensações visuais e as minhas sensações auditivas fossem idênticas, isso ainda não acarretaria o dado da experiência de que elas seriam ambas tidas pela mesma pessoa. Nós só podemos incluir esse dado numa descrição completa do mundo se supusermos que a identidade das substâncias que têm propriedades mentais conscientes é determinada pelo fato de que as propriedades mentais que elas têm ao mesmo tempo são co-experienciadas.

É também um evidente dado da experiência que certos eventos mentais são tidos sucessivamente pela mesma pessoa. As experiências requerem tempo – ainda que apenas um segundo ou dois; e cada experiência que eu tenho eu experiencio como consistindo de duas partes menores. Sou o sujeito comum da experiência de ouvir a primeira metade de sua sentença e a experiência de ouvir a segunda metade de sua sentença. E, contudo, o simples fato de que essas experiências são causadas por eventos na mesma parte da substância física que é meu cérebro não acarreta isso. Segue-se, por ambas essas razões, que não podemos descrever o mundo completamente exceto em termos de substâncias mentais que – se elas têm propriedades físicas – são as substâncias que são tanto em um tempo como num outro tempo, cujos limites não são mais estreitos que aqueles dos correlatos físicos daquilo que um sujeito co-experiencia.

Será evidente que não fará diferença para o caso que existam substâncias mentais se a teoria dos feixes de todas as substâncias físicas for falsa, e os objetos materiais inanimados, incluindo as moléculas-cerebrais, tiverem ecceidade (e assim sendo a mesma substância não é somente uma função das propriedades, mas da matéria em que as propriedades são instanciadas). Pois ainda não se seguiria disso que as propriedades mentais seriam co-experienciadas. Podemos descrever as ocorrências de co-experiências só se admitirmos a existência de substâncias mentais.

Esta conclusão é reforçada quando consideramos alguns dados neurofisiológicos e experimentos mentais bastante conhecidos. A questão crucial quando os hemisférios do cérebro de um paciente são separados é se (na hipótese de que as experiências sejam produzidas por ambos os hemisférios cerebrais) as experiências produzidas pelo hemisfério esquerdo de seu cérebro são co-experienciadas com as experiências produzidas pelo hemisfério direito de seu cérebro. Não se trata simplesmente de que algumas maneiras de separar o cérebro ou de definir quando ele começa ou deixa de existir forneceriam explicações mais simples do que outras de como o cérebro ou o corpo se comporta, mas que algumas maneiras acarretariam a não ocorrência de um dado da experiência, cuja ocorrência seria evidente para seu sujeito ou sujeitos – que um sujeito teve ambas as séries de experiências, ou que ele teve somente uma série. Se existe uma pessoa ou duas não é algo acarretado por quais experiências são conectadas a quais hemisférios cerebrais, ou a alguma coisa física diferente. Para descrever o que está acontecendo precisamos individuar as pessoas em parte pelas experiências que elas têm, e não pela extensão da unidade de um cérebro. Somente para descrever a experiência, não para explicá-la, necessitamos de substâncias mentais individuadas pelo menos em parte segundo esta maneira.

Esta conclusão é, além disso, reforçada quando consideramos o experimento mental do transplante de metade do cérebro. O cérebro de S é tirado de sua cabeça, dividido em duas metades, essas metades são colocadas em duas cabeças diferentes daquelas cujos cérebros foram removidos, alguns bits adicionais são acrescentados de um clone de S, os bits são conectados ao sistema nervoso e nós então temos duas pessoas funcionando com vidas mentais. Mas se nós conhecemos somente a história de todos os bits físicos, descritos em termos de suas propriedades (e, se preciso for, de sua matéria subjacente) e quais propriedades mentais são instanciadas em todas as pessoas envolvidas, parece haver algo crucial que ignoramos – qual (se uma ou outra) da subsequente pessoa é S. Se S sobreviveu a uma semelhante operação traumática parece ser uma questão evidentemente factual, e também uma questão indeterminada pelas propriedades físicas e mentais associadas às substâncias físicas. Somente se S é uma substância mental (a quem a experiências co-experienciadas ocorrem), pode haver uma verdade desconhecida sobre se S sobreviveu ou não a esta operação – o que seguramente às vezes poderá ocorrer. E mesmo que, como alguns filósofos supuseram - Apresentei argumentos bastante sucintos a favor da necessária indivisibilidade da alma ao argumentar contra a possibilidade de fissão de pessoas em The Evolution of the Soul (revised edition, Clarendon Press, 1997) p. 149-50, e contra a possibilidade de fusão de pessoas em minha contribuição a (ed.) Sydney Shoemaker and Richard Swinburne Personal Identity (Basil Blackwell, 1984) p.44-5. - , em tais casos cada uma das pessoas recentes seja parcialmente eu, esta não pode ser uma verdade necessária porque a história de todos os bits físicos e de todas as propriedades mentais associadas a elas é compatível com o fato de nenhuma pessoa ser plenamente eu, ou com só uma delas ser plenamente eu. Nós ainda ignoraríamos quais das sub-sequentes pessoas (se alguma) seria plenamente eu. Conclui-se que as substâncias mentais não são idênticas às substâncias físicas e que sua existência não é acarretada por elas, visto que pode haver mundos em que as substâncias físicas (cérebros e a extensão de sua continuidade) são as mesmas mas existem diferentes substâncias mentais (duas num mundo, somente uma em outro).

5. Substâncias mentais puras
Minha alegação final é que os seres humanos, você e eu, são substâncias mentais puras. Muitos experimentos mentais no espírito de Descartes parecem descrever situações concebíveis e constituir, desse modo, uma forte evidência da possibilidade lógica de eu existir sem um corpo, ou continuar a existir quando meu corpo é destruído. Permitam-me citar o experimento mental original de Descartes:

“Compreendi que enquanto eu pudesse conceber que eu não tinha nenhum corpo... Eu não poderia conceber que eu não exista. Por outro lado, se eu tivesse apenas cessado de pensar, ... eu não teria nenhuma razão para pensar que eu tivesse existido. A partir disso reconheci que eu era uma substância cuja natureza e essência toda é pensar e que para sua existência não é necessário nenhum lugar, nem depende de qualquer coisa material”.

Podemos compreender estas e muitas hipóteses similares (vida desencarnada depois da morte, etc.); elas não parecem conter qualquer contradição – e isso é uma forte evidência de que o que parecemos conceber é logicamente possível. Mas, diz o adversário, e esta objeção é relevante também relativamente aos experimentos mentais anteriores que mencionei, a questão é se tais hipóteses são “metafisicamente possíveis”. Uma possibilidade lógica é simplesmente uma possibilidade cuja negação não envolve uma contradição. Mas “Hesperus não é Phosphorus” ou “água não é H2O (‘Hesperus’, ‘Phosphorus’ ‘água’ sendo usados nos sentidos antigos) não envolve nenhuma contradição, mas o que se alega é absolutamente impossível, “metafisicamente impossível”. O metafisicamente impossível é mais abrangente que o logicamente impossível. Mas essa divergência entre o logicamente impossível e o metafisicamente impossível só surge quando substâncias ou propriedades são discriminadas por meio de designadores não informativos. Se não sabemos perfeitamente o que Hesperus é, então não sabemos perfeitamente o que ele pode ser. Entretanto, “eu” (ou ‘Richard Swinburne’ como empregado por mim) é um designador informativo.

Pois eu conheço as condições necessárias e suficientes a fim de uma substância ser essa substância. Posso reconhecer (com as faculdades funcionando perfeitamente, estando favoravelmente posicionado e não sujeito à ilusão) quando elas se aplicam e quando não se aplicam e fazer simples inferências a partir de suas aplicações. Pois eu posso sempre estar favoravelmente muito bem posicionado e totalmente livre de ilusão quando eu me percebo
como o sujeito da experiência e da ação – infalivelmente. Nisso eu sou, na frase de Shoemaker, “imune ao erro devido a má-identificação”. Não posso reconhecer que uma experiência consciente presente está tendo lugar e, não obstante, confundi-la como sendo sua quando ela na verdade é minha, ou vice-versa. Posso confundir-me se eu me distingo por meio de um corpo – por exemplo, acreditando falsamente que a pessoa vista no espelho sou eu – mas esse será um caso de ilusão. Portanto, eu conheço a essência daquele acerca de quem estou falando quando falo sobre mim.

Evidentemente eu posso futuramente não me lembrar direito do que eu fiz no passado, e na realidade não me lembrar direito como empreguei a palavra “eu” no passado. Mas este tipo de problema surge com toda afirmação, seja qual for, sobre o passado. “Verde” é um designador informativo de uma propriedade, mas eu posso futuramente não me lembrar direito que coisas eram verdes e inclusive o que eu significava por “verde” no passado. A diferença entre designadores informativos e não informativos é que (quando minhas faculdades estão funcionando bem, quando estou favoravelmente posicionado e não sujeito à ilusão) posso reconhecer quais objetos são corretamente discriminados atualmente por meio de designadores informativos, mas não geralmente quando eles são discriminados por designadores não informativos (na ausência de informação adicional). E, dessa maneira, eu sei a que corresponde uma asserção sobre o passado ou futuro quando ela é feita por meio de designadores informativos, mas não quando ela é feita por meio de designadores não informativos. Eu sei o que constituiria uma experiência passada ou futura ser minha, o que é uma pessoa futura ou passada ser eu. Não é assim com Hesperus ou a água. Eu não sei (no sentido definido) o que constituiria uma substância passada ou futura ser água ou Hesperus se me encontro simplesmente na condição de alguém que usa o termo “água” no século XVIII, ou o termo “Hesperus” no início do mundo antigo ou mesmo hoje – se eu não sei se um planeta tem certa ecceidade para ser Hesperus.

Concluo que, na ausência de alguma contradição lógica oculta (e eu quero dizer “lógica”) na descrição de Descartes de seu experimento mental – para supor o que seria imensamente implausível – o experimento mostra o que ele pretende mostrar: Descartes é uma substância mental pura. Ele poderia existir sem qualquer existência física, e dessa maneira as substâncias mentais puras existem logicamente independentemente das substâncias físicas. Cada um de nós pode fazer o mesmo experimento a respeito de nós mesmos e, desse modo, mostrar que nós somos substâncias mentais puras. E cada um de nós pode considerar o experimento mental anterior como feito para si mesmo; e então esta objeção sobre o logicamente possível nem sempre ser metafisicamente possível não terá qualquer força.

Existem, entretanto, duas espécies de substâncias mentais puras – aquelas que não têm um corpo como uma parte contingente, e aquelas que têm. Espíritos não têm corpos, por exemplo, ao passo que os seres humanos que vivem na Terra têm corpos. Mas uma vez que o corpo que é atualmente meu poderia continuar a existir como um corpo vivo sem ter qualquer conexão causal com qualquer substância mental, ou poderia tornar-se em vez disso o corpo de uma substância mental diferente; e visto que eu poderia, sob tais circunstâncias, continuar a existir e ter uma vida mental sem um corpo, eu agora consisto de duas partes separadas, – meu corpo (a parte contingente de meu eu), e o resto de meu eu que podemos chamar de minha alma (a parte essencial de meu eu).


Mas o que fixa a identidade das substâncias mentais puras? Se os objetos materiais têm ou não ecceidade, minha alma tem sua própria ecceidade, independentemente de qualquer ecceidade possuída por algum cérebro ao qual ela está conectada. Pois eu poderia ter tido uma vida mental diferente de uma vida que eu tive, e parece concebível (e, portanto, é provavelmente logicamente possível) que duas diferentes almas não-corporificadas poderiam sempre ter tido a mesma vida mental ao mesmo tempo – a mesma sucessão de propriedades mentais poderiam ser instanciadas em cada uma delas. Portanto, a substância mental não é a substância que é ela em virtude meramente das propriedades que ela tem. De maneira que a opinião Humeana da identidade pessoal como constituída por conexões causais (e outras relacionais) entre nossas presentes propriedades mentais instanciadas deve ser rejeitada. O mesmo ponto é apresentado pela aparente conceptibilidade de um mundo M2 em que para cada substância em M1 existe uma substância que tem as mesmas propriedades que ele e vice-versa (e qualquer matéria física subjacente às propriedades é a mesma em ambos os mundos), mas onde uma pessoa S que existe em M1 não existe em M2. A pessoa que vive em M2 a vida (física e mental) que S vive em M1 não é S. E certamente este mundo poderia ser diferente somente considerando que a pessoa que viveu minha vida era não eu. Pois ela não é acarretada pela descrição completa do mundo em seus aspectos físicos e em relação a quais feixes de propriedades mentais são instanciadas na mesma substância que eu, percebido como o verdadeiro sujeito de certas propriedades mentais, tenho as propriedades mentais ou físicas particulares que eu tenho e estou conectado com o corpo com o qual estou conectado. Sou essencialmente minha alma, cuja identidade é irredutível a qualquer outra coisa.

quarta-feira, 29 de abril de 2015

A Existência de Deus

Richard Swinburn

Emeritus Nolloth Professor of the Philosophy of the Christian Religion, University of Oxford. [Conferência apresentada no Departamento de Filosofia da UFRN, no dia 22 de novembro de 2007. Título original: “The Existence of God”.]

Tradução de Edrisi Fernandes.

As práticas da religião cristã, judaica ou islâmica só têm uma razão de ser se existe um Deus - não há motivo para cultuar um criador inexistente. Que fenômenos evidentes para todos, e em particular o universo e sua ordem, fornecem bons fundamentos para acreditar que Deus existe tem sido uma convicção geral cristã, judaica e islâmica. A produção de argumentos para mostrar isso é chamada “teologia natural”. Em minha conferência eu apresento uma teologia natural moderna. Reivindico que supor que existe um Deus explica porque, por algum motivo, existe um universo físico; porque existem as leis científicas existentes; porque animais e depois seres humanos evoluíram; porque os homens são conscientes; porque os humanos têm a possibilidade de moldar seu caráter e aquele de seus congêneres para o bem ou para o mal e para mudar o ambiente em que vivemos; porque através dos séculos milhões de pessoas (que não nós) tiveram a aparente experiência de estar em contato com e serem guiadas por Deus, e muitos outros fenômenos. Cada um desses fenômenos citados formou o ponto inicial de um argumento a favor da existência de Deus. Os argumentos me parecem ter um padrão comum. Algum fenômeno E, que todos nós podemos observar (por exemplo, que existem certas leis científicas particulares), é considerado. Reivindica-se que é provável que E ocorreria se existe um Deus, mas é improvável que E fosse ocorrer se não existe um Deus; pois Deus tem o poder de fazer ocorrer E e (sendo perfeitamente bom) ele bem poderia escolher fazer os humanos existirem, e assim aqueles fenômenos que são necessários para a sua existência. A existência de Deus é uma hipótese bastante simples que explica E, uma vez que – conforme postulado – ele é onipotente, onisciente e perfeitamente livre (e, daí, uma pessoa do tipo mais simples que pode existir), do que se segue que ele é perfeitamente bom. Daí, a ocorrência de E é evidência para se supor que existe um Deus. Argumentos desse tipo são argumentos indutivos a favor da causa dos fenômenos citados como evidência nas premissas, e são do padrão normal do argumento a favor causas na história e na ciência. Detetives usam esse padrão de argumento para argumentar a favor de uma hipótese sobre quem cometeu um crime, e cientistas usam esse padrão de argumento para argumentar a favor da existência de entidades não-observáveis como causas dos fenômenos que eles observam. Os argumentos da teologia natural são cumulativos – cada argumento faz crescer a probabilidade de que existe um Deus; juntos eles a tornam bastante provável. Nessa conferência apenas terei tempo de considerar argumentos dos primeiros três fenômenos mencionados acima. Mas, junto com argumentos a partir de outros fenômenos (e assumindo que têm pouca força argumentos contra a existência de Deus a partir de outros fenômenos), reivindico que a hipótese da existência de Deus faz sentido a partir do [ou dá sentido ao] conjunto de nossa experiência, e faz isso melhor que qualquer outra explicação que pode ser apresentada, e isso é o fundamento para se acreditar que seja verdadeira.

Porque, por algum motivo, acreditar que existe um Deus? Minha resposta é supor que supor que existe um Deus explica o motivo da existência de um universo físico; porque existem as leis científicas existentes; porque animais e depois seres humanos evoluíram; porque os homens são conscientes; porque os humanos têm a possibilidade de moldar seu caráter e aquele de seus congêneres para o bem ou para o mal e para mudar o ambiente em que vivemos; porque temos o bem autenticado relato da vida, morte e ressurreição do Cristo; porque através dos séculos milhões de pessoas (que não nós) tiveram a aparente experiência de estar em contato com e serem guiadas por Deus, e muito mais. De fato, a hipótese da existência de Deus faz sentido a partir do [ou dá sentido ao] conjunto de nossa experiência, e faz isso melhor que qualquer outra explicação que pode ser apresentada, e isso é o fundamento para se acreditar que seja verdadeira. Nessa conferência tentarei mostrar como ela [essa hipótese] faz sentido a partir dos [ou dá sentido aos] primeiros três desses fenômenos.

Que fenômenos evidentes para todos, e em particular o universo e sua ordem, fornecem bons fundamentos para acreditar que Deus existe tem sido uma convicção geral cristã, judaica e islâmica. A produção de argumentos para mostrar isso é chamada “teologia natural”, e pode ser útil começar com algumas ponderações sobre o lugar da teologia natural na tradição cristã.

O profeta Jeremias escreveu sobre a “aliança entre o dia e a noite” (Jr 33:25-26), indicando que a regularidade com que o dia sucedia a noite mostrava que o deus encarregado do Universo era poderoso e confiável, ou seja, que deus era Deus. A literatura sapiencial do Velho Testamento desenvolveu a idéia de que os detalhes da criação mostravam muito sobre o Criador. São Paulo escreveu que as “coisas invisíveis” de Deus “são claramente vistas, sendo percebidas através das coisas que são feitas”(Rm 1:20), e que os pagãos poderiam ver por eles mesmos. Essa tradição bíblica misturou-se no mundo grego tardio com os argumentos de Platão e Aristóteles a favor da existência de uma suprema força do ser. E assim vários teólogos cristãos, no oriente e no ocidente, tiveram seu parágrafo ou dois sumarizando um argumento a favor de Deus a partir da existência ou ordem do universo – entre os quais Irineu, Gregório de Nissa, Agostinho, Máximo o Confessor e João Damasceno. Mas é normalmente apenas um parágrafo ou dois, e o raciocínio é rápido. Minha explicação sobre porque eles destinaram tão pouca energia a esse assunto é que eles não sentiram qualquer necessidade de fazer mais. A maior parte de seus contemporâneos aceitavam que existiam deuses ou um Deus. O que os teólogos precisavam argumentar é que existia apenas um Deus assim, e que ele tinha certas características cristãs específicas e que tinha agido na história de certos modos particulares.

Com a chegada do segundo milênio, contudo, os teólogos do ocidente medieval e, sobretudo, Tomás de Aquino e Duns Escoto, começaram a produzir argumentos de considerável extensão e rigor a favor da existência de Deus, e essa empreitada de teologia natural continuou ininterruptamente na tradição católica até o século XIX. Os protestantes clássicos, contudo, embora acreditando que o mundo natural mostrava evidência abundante de seu criador, pensaram que a pecaminosidade humana obscurecia nossa habilidade de reconhecer essa evidência, e que em todo caso existiam melhores modos de vir a conhecer a Deus. Por outro lado, os protestantes liberais (particularmente aqueles da Grã-Bretanha do século XVIII) argumentaram com alguma extensão “desde a natureza até o Deus da natureza”. Muitos deles viram as maravilhas da natureza, especialmente aquelas novas maravilhas registradas pelo microscópio e pelo telescópio, como evidência nova e positiva da existência de Deus, e eles quiseram impulsionar seus contemporâneos religiosamente morosos a maravilharem-se. Mas finalmente no século XIX uma combinação do que eu vejo como razões muito ruins derivadas de Hume, Kant e Darwin levaram ao abandono do antigo projeto da teologia natural por muitas partes da tradição cristã. Isso foi desafortunado – pois a cristandade (e qualquer outra religião teísta) precisa da teologia natural.

As práticas da religião cristã (e de qualquer outra religião teísta) apenas têm uma razão de ser se existe um Deus – não existe razão para cultuar um criador inexistente ou para pedir a ele para fazer algo na Terra ou levar-nos para o Céu se ele não existe; ou para tentarmos viver nossas vidas de acordo com sua vontade, se ele não tem qualquer vontade. Nos primeiros séculos e no medievo a maior parte as pessoas criadas como cristãos simplesmente tomaram a existência de Deus como ponto pacífico. A maior parte dos convertidos pode ter acreditado preliminarmente que existe um Deus; a sua conversão envolveu a aceitação de reivindicações mais detalhadas sobre ele. E se os cristãos duvidavam, ou os convertidos não acreditavam inicialmente, que existe um Deus, muitos deles podem ter vindo a acreditar, com base na experiência religiosa, em algum sentido ou testemunho, ao invés de com base na teologia natural. Isso teria sido racional. É, de fato, um princípio básico da crença racional – que eu chamo de Princípio da Credulidade – que aquilo que a você parece, com base na experiência, ser de um tal modo, provavelmente é desse modo – na ausência de uma contra-evidência. Se lhe parece que você me vê recostar-me no púlpito ou escutar minha voz, então provavelmente você o faz – a não ser que você acorde e descubra que foi tudo um sonho, ou que alguém lhe mostre que na realidade não há qualquer púlpito ali; o que parece ser um púlpito é na realidade um holograma. E isso é também um princípio básico da crença racional, o qual eu chamo de Princípio do testemunho, que aquilo que as pessoas lhe dizem provavelmente é verdade – na ausência de uma contra-evidência. E assim, se seus professores lhe disseram que a Terra tem milhões de anos de idade, ou se você lê num jornal que houve um terremoto na Turquia, essas coisas provavelmente são assim – a não ser que você aprenda algo que lance dúvidas sobre elas. Quando a dúvida é lançada, necessitamos argumentos positivos para mostrar que há um púlpito ali, ou que a Terra tem milhões de anos de idade. Não pode haver justificação para não se estender esses princípios gerais da racionalidade ao caso da crença religiosa. Se você teve uma experiência aparentemente de Deus, você provavelmente a teve, e se seus professores lhe dizem que existe um Deus, é racional acreditar neles – na ausência de uma contra-evidência. Uma contra-evidência pode assumir muitas formas – o fato de haver dor ou sofrimento pode parecer incompatível com a existência de Deus ou torná-la improvável, e professores rivais podem lhe dizer que não existe Deus. A contra-evidência pode ser forte ou fraca, e mesmo se for consideravelmente forte pode (racionalmente) não perturbar a crença de alguém que acredita na autoridade de alguém que teve uma experiência religiosa decisivamente forte ou que acredita na autoridade de inumeráveis professores de antecedentes diversos. Mas geralmente a presença de contra-evidência deixa em aberto a questão da existência de Deus, que então precisa ser sustentada por argumentos positivos (e/ou ter seus argumentos contrários refutados) se a crença de que Deus existe é para ser racional. E a maior parte dos pensadores cristãos antes de 1850 acreditaram que existiam bons argumentos da teologia natural disponíveis para aqueles que não tinham qualquer razão, ou suficiente razão, para acreditar em Deus com base na experiência ou do testemunho. Mas desde que existe bem mais dúvida sobre a existência de Deus no ocidente cético de hoje que na maior parte das culturas e dos séculos precedentes, a necessidade da teologia natural é bem maior do que jamais foi antes – tanto para aprofundar a fé do crente quanto para converter o incrédulo.

Os medievais – e Tomás de Aquino paradigmaticamente – tentaram deslocar a razão desde o mundo até Deus sob a forma de um argumento dedutivo. Mas tudo que um argumento dedutivo pode fazer é extrair de sua conclusão aquilo a que você já está predisposto pelas suas premissas. Um argumento dedutivo válido é aquele no qual se você afirma a premissa ou premissas mas nega a conclusão você contradiz a si mesmo. Por exemplo, há um argumento dedutivo válido desde “todos os homens são mortais” e “Sócrates é um homem” (premissas) até “Sócrates é mortal” (conclusão); e desde “a mesa é marrom” até “a mesa é colorida”. Seria auto-contraditório dizer “a mesa é marrom, mas não colorida”. Mas é muito implausível supor que um argumento [que vá] desde “há um universo físico” (e/ou desde quaisquer evidentes traços gerais do universo) para “existe um Deus” é assim. Pois uma afirmação razoavelmente evidente como “existe um universo físico, mas nenhum Deus” (o quão irracional que possa ser acreditar nela) não contém qualquer contradição interna. Não é como “a mesa é marrom, mas não colorida”. “Existe um Deus” vai além das premissas ao afirmar a existência ou ordem do universo, vai até algo bem maior. Mas um argumento que se propõe a ser válido e não é, é inválido. E nos séculos subjacentes a Tomás de Aquino muitas pessoas indicaram as detalhadas falácias nos seus argumentos.

Contudo, um argumento que vai da existência e ordem do Universo até a existência de Deus é melhor representado não como dedutivo, mas como indutivo – um argumento no qual as premissas fazem a conclusão provável até certa medida, talvez bastante provável, mas não certa. Todos os argumentos na ciência e na história desde a evidência até a teoria são indutivos, mas Aristóteles e seus sucessores que tentaram (com sucesso moderado) codificar as formas válidas de argumento dedutivo tinham muito pouco entendimento da distinção entre dedução e indução, para não falar dos critérios de um bom argumento indutivo. Apenas hoje estamos começando a ter alguma compreensão da indução. Um traço dos argumentos indutivos é que eles são cumulativos. Uma parte de evidência afirmada em uma premissa pode oferecer uma certa quantidade de probabilidade à conclusão; outra parte de evidência pode aumentar essa probabilidade. E se argumentos a partir do universo e sua ordem ocasionam apenas uma conclusão provável, e não uma certa, há espaço para que a experiência religiosa e a tradição tornem a conclusão ainda mais provável. Quero agora argüir que três argumentos – da existência do universo, da existência de leis científicas simples e dessas leis levando à evolução de seres humanos – são fortes argumentos indutivos a favor da existência de Deus. Não haverá tempo em minha conferência para discutir outros argumentos, ou para discutir o argumento principal contra a existência de Deus a partir do mal ou do sofrimento (embora vocês possam querer levantar esses tópicos no tempo reservado à discussão).

Cada um dos fenômenos aos quais me referi no começo da conferência formou o ponto inicial de um argumento a favor da existência de Deus. Parece-me que esses argumentos têm um padrão comum. Algum fenômeno E, que todos nós podemos observar, é considerado. Alega-se que E é enigmático, estranho, inesperado no curso ordinário das coisas, mas que deve-se esperar E se existe um Deus, pois Deus tem o poder de fazer ocorrer E, e ele bem pode escolher fazer isso. Donde a ocorrência de E ser razão para se supor que existe um Deus.

Esse tipo de argumento é muito usado em ciência, história, e em todos os outros campos da investigação humana. Um detetive, por exemplo, encontra várias pistas – as impressões digitais de John em um cofre roubado, o fato de John ter bastante dinheiro escondido em sua casa, o fato de John ter sido visto próximo à cena do roubo na ocasião em que ele foi cometido. Ele então sugere que essas várias pistas, embora possam bem ter outras explicações, em geral não são esperáveis exceto se John tiver roubado o cofre. Cada pista é evidência parcial (some) de que ele roubou mesmo o cofre, e confirma a hipótese de que John roubou o cofre, e a evidência é cumulativa – quando coletada ela torna a hipótese provável.

Argumentos desse tipo são argumentos indutivos da causa dos fenômenos citados como evidência nas premissas. Os cientistas usam esse tipo de argumento para argumentar a favor da existência de entidades não-observáveis como causas dos fenômenos que eles observam. Por exemplo, no começo do século XIX os cientistas observaram muitos fenômenos variados de interação química, de um modo tal que as substâncias se combinam em proporções fixas por peso para formarem novas substâncias (p.ex., o hidrogênio e o oxigênio sempre formam água numa proporção de 1:8 por peso). Eles então alegaram que esses fenômenos seriam de se esperar se existissem cem, ou perto disso, diferentes tipos de átomos, partículas demasiado pequenas para serem vistas, que se combinavam e recombinavam em certos modos simples. Por sua vez, os físicos postularam elétrons, prótons, nêutrons e outras partículas, de modo a dar conta do comportamento dos átomos, bem como de fenômenos observáveis em maior escala, e agora eles postulam quarks de modo a explicar o comportamento de prótons, nêutrons e outras partículas.

Para serem bons argumentos (isso é, para fornecer evidência para as suas hipóteses), argumentos desse tipo precisam satisfazer quatro critérios. Primeiro, os fenômenos que eles citam como evidência devem ser fenômenos que se espera que ocorram (isso é, é consideravelmente provável que eles venham a ocorrer) se a hipótese é verdadeira. Se John roubou mesmo o cofre é bastante provável que suas impresses digitais seriam encontradas nele. Em segundo lugar, os fenômenos devem ser menos prováveis de ocorrer no curso normal das coisas, isto é, se a hipótese é falsa. Vimos no exemplo do roubo como as várias pistas, tais como as impressões digitais de John no cofre, não seriam muito de se esperar no curso normal das coisas. Em terceiro lugar, a hipótese deve ser simples; isto é, ela deve postular a existência e a operação de poucas entidades, com poucas propriedades facilmente descritíveis, comportando-se de modos matematicamente simples. Sempre poderemos postular muitas entidades novas com propriedades complicadas para explicar algo que acharmos. Mas nossas hipóteses só serão sustentadas pela evidência se ela postular poucas entidades que nos levem a esperar os diversos fenômenos que formam a evidência. Desse modo, no exemplo da estória de detetive poderíamos supor que Brown “plantou” as impressões digitais de John no cofre, que Smith se vestiu para ficar parecido com John na cena do crime, e que, sem qualquer conluio com os outros, Robinson escondeu o dinheiro no apartamento de John. Essa nova hipótese nos levaria a esperar os fenômenos tanto quanto a hipótese que John roubou o cofre. Mas a última hipótese é confirmada pela evidência, enquanto a primeira não é. E isso ocorre porque a hipótese de que John roubou o cofre postula um objeto – John – fazendo uma ação – roubar o cofre – o que nos leva a esperar os diversos fenômenos que encontramos. Os cientistas sempre postulam tão poucas entidades novas (p.ex., partículas subatômicas) quantas são necessárias a nos levar a esperar encontrar os fenômenos que observamos, e eles postulam que essas entidades não se comportam erraticamente (se comportam de um modo num dia e de modo diferente no outro), mas que elas se comportam de acordo com uma lei matemática tão simples e fácil quanto for compatível com o que é observado. E em quarto lugar, a hipótese deve se adequar ao nosso conhecimento sobre como o mundo opera em campos mais amplos, aquilo que devo chamar de nosso conhecimento de fundo. A hipótese de que John roubou o cofre deve se adequar àquilo que sabemos de outras ocasiões sobre se John freqüentemente rouba cofres, Mas quando estamos lidando com uma hipótese que se propõe a explicar uma vasta amplitude (range) de fenômenos, esse critério tende a ser derrubado – posto que não haverá campos de investigação mais amplos nos quais tenhamos conhecimento substancial sobre como as coisas operam. Não estava disponível nem havia conhecimento de fundo de campos de investigação mais amplos com os quais a teoria gravitacional newtoniana tivesse que se adequar quando Newton a apresentou em 1689 (por exemplo, inexistia um conhecimento sistemático da eletricidade ou do magnetismo). Nem existe hoje em dia um conhecimento tal para garantir as chamadas “teorias de tudo”, que os físicos vêm postulando, teorias que se propõem a explicar todos os fenômenos físicos. E esse critério não será relevante para garantir a hipótese do teísmo – que existe um Deus – que é apresentada como a verdadeira “teoria de tudo” (uma hipótese mais geral que a mais ampla hipótese da física, ao se propor a explicar porque uma teoria assim é apropriada e a explicar não meramente os fenômenos físicos, mas também a vida consciente). Um argumento indutivo a favor de uma causa será tanto mais forte quão melhor satisfeitos forem os quatro critérios, isto é, quanto mais plausível for que os fenômenos venham a ocorrer se e somente se a causa postulada ocorrer, quanto mais simples for a causa postulada, e – se relevante – o quão melhor a explicação se adeqüe ao conhecimento de fundo. Quão melhor os critérios são satisfeitos, mais provável é que a explicação proposta seja verdadeira.

O fenômeno mais geral que fornece evidência a favor da existência de Deus é a existência do universo físico pelo tempo em que ele tem existido (seja num tempo finito ou, se ele não tem um começo, um tempo infinito). Isso é algo evidentemente não explicável pela ciência, pois uma explicação científica dessa natureza explica a ocorrência de qualquer estado de coisas S1 em termos de um estado prévio de coisas S2 e de alguma lei da natureza que faz com que estados como S2 façam ocorrer estados como S1. Assim, ela pode explicar as posições atuais dos planetas por um estado prévio do sistema (estando o sol e os planetas onde eles estavam ano passado) e a operação das leis de Kepler, que afirmam que estados como o último [S2] são acompanhados um ano depois por estados como o primeiro [S1]. Mas o que a ciência, por sua natureza intrínseca não pode explicar é porque, por algum motivo, existem quaisquer estados de coisas.

Meu próximo fenômeno é a operação das leis mais gerais da natureza, isto é, a conformação da ordem da natureza às leis bastante gerais da física e às regularidades da química. Seguimos aqui exatamente aquilo que as leis mais gerais da ciência podem ainda não ter descoberto – talvez, que existem equações de campo da Teoria Geral da Relatividade de Einstein, ou mais provavelmente, que existem algumas leis ainda mais fundamentais, talvez as leis de uma “Teoria de Tudo”. Agora a ciência pode explicar porque uma lei opera em alguma área estreita, em termos da operação de uma lei mais ampla nas condições particulares daquela área estreita. Assim ela pode explicar porque se sustenta a lei da queda [dos corpos] de Galileu - que pequenos objetos próximo à superfície da Terra caem com uma aceleração constante em direção à Terra. A lei de Galileu decorre das leis de Newton, dado que a Terra é um corpo massivo longe de outros corpos massivos e que os objetos em sua superfície estão pertos dela e têm massa comparativamente menor. Mas o que a ciência, por sua natureza intrínseca, não pode explicar, é porque existem as leis mais geral da natureza existentes, pois ex hypothesi não há leis mais amplas que possam explicar sua operação.

Que existe um universo e que existem leis da natureza são fenômenos tão gerais e difundidos que tendemos a ignorá-los. Mas, de modo semelhante, facilmente também poderia não existir, nem ter existido nunca, um universo. Ou o Universo poderia, de modo igualmente fácil, existir como uma confusão caótica. Que existe um Universo ordenado é algo muito pungente, ainda [ou: e no entanto] longe da capacidade de explicação da ciência. A inabilidade da ciência em explicar essas coisas não é um fenômeno temporário, causado pelo atraso da ciência do século XXI.

Ao invés disso, em virtude do que uma explicação científica é, essas coisas sempre estarão além de sua capacidade explicativa. Pois as explicações científicas, por sua própria natureza, terminam com alguma lei natural suprema ou arranjo supremo das coisas físicas, e as questões que estou levantando dizem respeito a porque existem quaisquer leis naturais ou coisas físicas.
Contudo, existe outro tipo de explicação de fenômenos que usamos o tempo todo e que vemos como um modo apropriado de explicar fenômenos. Isso é o que chamo de explicação pessoal. Freqüentemente explicamos algum fenômeno E como tendo sido feito acontecer por uma pessoa P de modo a alcançar algum propósito ou meta G. O movimento presente dos meus lábios é explicando como feito acontecer por mim com o propósito de fazer uma conferência. O fato do copo estar sobre a mesa se explica por alguém tê-lo posto lá com o propósito de se beber dele. No entanto, essa maneira de explicar as coisas é diferente da científica. A explicação científica envolve leis da natureza e estados prévios de coisas. A explicação pessoal envolve pessoas e suposições. Se não podemos dar uma explicação científica para a existência e ordem do Universo, talvez possamos dar uma explicação pessoal.

Mas porque devemos pensar que a existência e a ordem do Universo têm uma explicação qualquer? Buscamos por uma explicação de todas as coisas, mas vimos que apenas temos razão para supor que encontramos uma se a explicação proposta é simples e nos leva a esperar o que encontramos quando, de outro modo, isso não é para ser esperado. A história da ciência mostra que julgamos que fenômenos que são muitos e complexos necessitam explicação, e que eles são para ser explicados em termos de algo mais simples. Os movimentos dos planetas (sujeito às leis de Kepler), as interações mecânicas dos corpos na Terra, o comportamento dos pêndulos, os movimentos das marés, o comportamento dos cometas etc., formaram uma coleção bastante diversificada de fenômenos. As leis do movimento de Newton constituíram uma teoria simples que nos levou a esperar esses fenômenos, e assim foi considerada uma explicação verdadeira para eles. A existência de milhares de substâncias químicas diferentes combinando-se em diferentes proporções para fazer outras substâncias era complexa. A hipótese de que existiam apenas cem, ou perto disso, elementos químicos dos quais os milhares de substâncias foram feitas era uma hipótese simples que nos levou a esperar o fenômeno complexo.

Nosso Universo é uma coisa complexa. Existem muitos e muitos pedaços separados de material no universo. Cada pedaço tem volume, forma, massa etc. diferentes, finitos e não muito naturais – considere a vasta diversidade das galáxias, estrelas e planetas, e pedregulhos na praia. A matéria é inerte e não tem poderes que possa escolher exercer; ela faz o que ela tem de fazer. Existe uma quantidade limitada dela em qualquer região e ela tem uma quantidade limitada de energia e velocidade.

A conformidade dos objetos através de tempo e espaço infindáveis a leis simples é, similarmente, algo que reclama uma explicação em termos ainda mais simples. Consideremos, pois, o que isso quer dizer. As leis não são coisas, independentemente de objetos materiais. Dizer que todos os objetos se conformam a leis é simplesmente dizer que todos eles se comportam exatamente do mesmo modo, que eles têm certos poderes que exercem sobre outros objetos, e tendências a exercer esses poderes sob certas circunstâncias. Dizer, por exemplo, que todos os fótons (as partículas da luz) se movem a 300.000 km/s em relação a todos os enquadramentos inertes, é justo dizer que cada fóton tem o poder de fazer isso e a tendência de sempre fazer isso. Há, portanto, essa vasta coincidência dos poderes e tendências dos objetos em todos os tempos e em todos os lugares. Essas leis permitem à física, como mencionei, fornecer explicações relativamente simples dos fenômenos, mas elas mesmas reclamam uma explicação em termos de algo bem mais simples. Se todas as moedas de alguma região tem as mesmas marcas, ou se todos os papéis [ou: artigos] em uma sala são escritos com a mesma caligrafia, buscamos uma explicação em termos de uma fonte comum dessas coincidências. Devíamos buscar uma explicação similar para essa vasta coincidência que descrevemos como a conformidade dos objetos a leis da natureza – por exemplo, o fato de que todos os elétrons são produzidos, atraem e repelem outras partículas e se combinam com elas exatamente do mesmo modo a cada ponto dos infindáveis tempo e espaço.

A hipótese do teísmo é que o Universo existe porque existe uma pessoa divina, que o mantém na existência e que as leis da natureza operam porque existe uma pessoa divina que faz com que elas operem. Ele faz com que as leis da natureza operem ao preservar em cada objeto sua tendência a comportar-se de acordo com essas leis. Ele faz com que o Universo exista ao preservar a cada momento (do tempo finito ou infinito) objetos com os poderes e tendências codificados pelas leis da natureza, incluindo as leis da conservação da matéria-energia, isto é, ao fazer que seja o caso a cada momento que aquilo que existia antes continue a existir. A hipótese é uma hipótese de que uma pessoa faz essas coisas ocorrerem por algum propósito. Ele age diretamente sobre o Universo, como agimos diretamente sobre nossos cérebros, guiando-os a moverem nossos braços (mas o Universo não é seu corpo – pois ele poderia a qualquer momento destruí-lo, e agir num outro universo, ou passar [do] sem um universo). Como vimos, a explicação pessoal e a explicação científica são os dois modos que temos para explicar a ocorrência de fenômenos. Já que não pode existir uma explicação científica para a existência do Universo, ou existe uma explicação pessoal ou inexiste qualquer explicação. A hipótese de que existe uma pessoa divina é a hipótese da existência do tipo mais simples de pessoa que poderia existir. Uma pessoa é um ser que existe por algum tempo com o poder de causar efeitos, o conhecimento de como fazer isso e a liberdade de fazer escolhas em relação a quais efeitos causar. Uma pessoa divina é, por definição, uma pessoa perpétua onipotente (isto é, infinitamente poderosa), onisciente (isto é, tudo-sapiente), e perfeitamente livre; ele é uma pessoa perpétua de infinito poder, conhecimento e liberdade, uma pessoa para cuja existência, poder, conhecimento e liberdade não existem limites exceto aqueles da lógica. A hipótese de que existe um ser com graus infinitos das qualidades essenciais para um ser desse tipo é a postulação de um ser bastante simples. E é ainda mais simples supor que essas propriedades não são acidentalmente correlacionadas com cada uma outra, mas que se seguem necessariamente da essência da pessoa divina. A hipótese de que existe uma tal pessoa divina é uma hipótese muito mais simples do que a hipótese de que existe um Deus que tem um poder limitado desse ou daquele modo. É mais simples, exatamente do mesmo modo que a hipótese de que alguma partícula tem massa zero ou velocidade infinita é mais simples do que a hipótese de que ela tem 0,32147 de alguma unidade [de massa] ou uma velocidade de 221.000 km/s. Uma limitação finita reclama uma explicação do porque existe justamente esse limite, de um modo que a não limitação não reclama. Da perfeita liberdade de Deus segue-se que ele não existirá sujeito a quaisquer influências que o impeçam de fazer o que ele vê razão para fazer, isto é, aquilo que ele acredita ser bom fazer, e posto que ele é onisciente, ele sempre saberá o que é bom, ele sempre fará o que é bom. Ele será perfeitamente bom. Que deva existir qualquer coisa, sem mencionar um universo tão complexo e ordenado como o nosso, é excessivamente estranho. Mas se existe um Deus, não é vastamente improvável que ele deveria criar um universo assim. Um universo como o nosso é uma bela coisa, e um teatro no qual os humanos (e, por uma extensão limitada, outras criaturas) podem crescer e produzir seu destino. A ordem do Universo o torna um belo Universo, mas, de modo ainda mais importante, ela faz dele um Universo que os humanos podem aprendera controlar e mudar. Um bom Deus desejará criar criaturas tais como seres humanos possuindo uma livre escolha entre o bem e o mal, uma profunda responsabilidade por si mesmos e um pelo outro e uma habilidade para formarem seu próprio caráter de um modo tal a amarem a Deus, e para isso necessitamos de corpos, lugares onde podemos interagir um com o outro e assim machucar ou beneficiar um ao outro. Mas os seres humanos apenas podem cuidar de si mesmos e um do outro (ou escolher não fazê-lo) se existem leis simples governando um universo no qual os seres humanos estão corporificados. Se temos corpos, então existem modos pelos quais podemos machucar ou beneficiar um ao outro. No entanto, apenas se essas forem leis simples da natureza que podemos vir a aprender haverá modos pelos quais isso ou aquilo que faço fará uma previsível diferença para mim ou para você. Apenas se os humanos souberem que, semeando certas sementes, removendo as ervas daninhas e aguando as sementes, eles colherão milho, eles poderão desenvolver uma agricultura. E apenas se eles souberem que atritando bastões eles podem fazer fogo eles poderão queimar os suprimentos alimentares de outros. Leis apreensíveis da natureza permitem aos agentes uma escolha sobre como tratar um ao outro. Assim, Deus tem uma boa razão para fazer um universo ordenado e, ex hypothesi, sendo onipotente ele tem o poder para fazê-lo. Assim, a hipótese de que existe um Deus torna a existência do Universo muito mais esperada do que de outro modo seria, e essa é uma hipótese muito simples. Daí que os argumentos da existência do Universo e de sua conformidade com leis naturais simples sãobons argumentos para uma explicação dos fenômenos, e fornecem evidência substancial para a existência de Deus.

O ultimo fenômeno que considerarei é a evolução dos animais e humanos. Na metade do século XIX Darwin estabeleceu sua impressionante teoria da evolução pela seleção natural para dar conta da existência de animais e humanos. Uma vez existiram organismos primitivos. Esses animais variaram de várias formas em relação a seus progenitores (alguns eram mais altos, alguns mais baixos, alguns mais gordos, alguns mais magros, alguns tinham princípios de asas, outros não tinham, e assim por diante). Esses animais com características que os tornavam melhor adaptados para sobreviver sobreviveram e passaram suas características para a próxima geração. Mas, apesar de em geral se assemelharem aos seus progenitores, sua prole diferia daquela deles, e as variações que melhor se adequavam à sobrevivência do animal foram novamente aquelas mais prováveis de serem passadas para uma outra geração.

Esse processo continuou por milhões de anos, produzindo a inteira variedade de animais que temos hoje, cada qual adaptado a sobreviver em um ambiente diferente. Entre as características que dão vantagem em uma luta pela sobrevivência estava a inteligência, e as seleções para essa característica eventualmente levaram à evolução dos humanos. Tal é o relato de Darwin sobre porque hoje em dia temos os animais e os humanos.

Tão longe quanto ele alcança, esse relato certamente é correto. Mas existem assuntos cruciais além do seu escopo. O mecanismo evolucionário que Darwin descreve opera apenas porque existem certas leis da bioquímica (os animais produzem muitas proles; essas variam de várias formas em relação aos seus progenitores, etc.). Mas porque existem essas leis, ao invés de outras leis? Sem dúvida porque essas leis seguem as leis básicas da física. Mas, então, porque essas leis básicas da física têm uma forma tal de modo a originar leis da evolução? E porque, em primeiro lugar, houve os organismos primitivos? Uma estória plausível pode ser contada acerca de como a “sopa primeva” de matéria-energia ao tempo do “Big Bang” (um momento cerca de 13.500 milhões de anos atrás, no qual, dizem-nos os cientistas agora, o Universo, ou pelo menos o presente estágio do Universo, começou) originou, ao longo de muitos milênios, de acordo com as leis físicas, aqueles organismos primitivos. Mas então porque, em primeiro lugar, houve matéria adequada para um tal desenvolvimento evolucionário? Com respeito às leis e com respeito à matéria primeval, temos novamente a mesma escolha, de dizer que essas coisas não podem ser melhor explicadas ou de postular uma explicação ulterior. O assunto aqui não é porque existem quaisquer leis ou porque de algum modo existe matéria, mas porque as leis e a matéria têm essa característica peculiar, que elas são prontamente mobilizadas para produzir plantas, animais e humanos. Posto que são as leis mais gerais da física que têm essa característica especial, não pode haver explicação científica do porque elas são do modo que são. E embora possa haver uma explicação científica de porque a matéria tinha ao tempo do Big Bang a característica especial que ela tinha, em termos de sua característica em algum tempo anterior, claramente, se houve um estado primeiro do Universo, ele deve ter sido de um certo tipo: ou se o Universo tem durado sempre, (além de ter o tipo certo de leis) sua matéria precisaria ter em todos os tempos certos aspectos gerais (p.ex., a respeito da quantidade e diversidade de sua matéria energia) se em algum tempo teria de haver um estado do Universo adequado para produzir animais e humanos. As explicações científicas chegam a um ponto de parada. Permanece a questão sobre se devemos aceitar essas aspectos particulares das leis e da matéria do Universo como fatos brutos supremos ou se devemos ir além deles até uma explicação pessoal em termos da atuação de Deus.

O que a escolha determina é o quão possível é que as leis e condições iniciais deveriam ao acaso ter exatamente essa característica. O trabalho científico recente chamou a atenção para o fato de que o Universo é bem afinado. Dadas as leis do tipo atual (as quarto forças, constrangidas pelos requisitos da Teoria Quântica), a matéria-energia ao tempo do Big Bang tinha de ter uma certa densidade e uma certa velocidade de recessão; um aumento ou diminuição com respeito a essas variáveis por uma parte num milhão teria tido o efeito de que o Universo não seria fomentador de vida. Por exemplo, se o Big Bang tivesse feito os quanta

de matéria-energia recuar um em relação outro um pouco mais rapidamente, nenhuma galáxia, estrela ou planeta, e nenhum ambiente adequado à vida, teria sido formado. Se a recessão tivesse sido marginalmente mais lenta, o Universo teria colapsado sobre si mesmo antes que a vida pudesse ter se formado. Similarmente, as constantes nas leis da natureza precisavam repousar dentro de limites muito estreitos se a vida era para ser formada. Se permitimos a possibilidade de leis de tipos diferentes daqueles que operam em nosso universo, elas teriam de ser tipos muito especiais, não mais simples que as atuais, se a vida – sem mencionar uma vida de tipo humano – tivesse de evoluir, e assim novamente é a priori muito improvável que a vida sensiente iria evoluir. É, portanto, muito improvável que as leis e condições iniciais teriam tido por acaso um caráter produtor de vida. Alguns físicos atuais lhe dirão que vivemos em um multiverso de modo que muitos diferentes universos possíveis eventualmente virão a existir, e, assim, não é de surpreender que exista um como o nosso. Mas, já que eles não podem observar esses outros universos, os físicos só teriam algum fundamento para fazer essa alegação se a mais simples teoria do nosso universo tivesse a conseqüência de que ele é governado por leis da natureza que, de tempos em tempos, fazem brotar universos de tipos diferentes. Assim, o próprio multiverso teria de ser governado por leis que, de modo a alcançar esse “brotamento”, certamente teriam de ser consideravelmente menos simples que as leis do nosso universo, e assim ainda menos provável de ocorrer por acaso. E, assim, é muito improvável que devamos viver em um multiverso que tem a característica de produzir em algum estágio um universo como o nosso, quando muitíssimos possíveis multiversos (muitos dos quais consistindo em apenas um universo e governado por leis mais simples que o multiverso) não terá essa característica. A hipótese do multiverso não torna as características do nosso universo nem um pouco mais improvável.

Deus é capaz de dar à matéria e às leis esse caráter. Se podemos mostrar que ele teria razões para fazer isso, então isso dá apoio à hipótese de que ele assim fez. Também se dispõe de uma razão (adicional à razão de sua beleza) porque Deus teria, por algum motivo escolhido fazer existir um Universo – o valor intrínseco dos seres corporificados sensientes que o processo evolucionário faria existir, e acima de tudo dos humanos que podem, por si próprios, tomar decisões informadas sobre que tipo de mundo deveria existir.


Assim, os três argumentos que considerei – da existência do Universo, de sua conformidade com as leis naturais e da existência de humanos e animais – para a hipótese da existência de Deus são todos eles argumentos que satisfazem bem os três critérios dados antes para os argumentos indutivos para uma explicação. Os fenômenos citados pelas premissas não são ordinariamente esperados, eles devem ser esperados se a causa postulada na conclusão existe e a hipótese da existência dessa causa é simples cause. De fato, sugiro que esses não são meramente bons argumentos a favor da existência de Deus, mas que esses argumentos são bastante fortes. A pessoa divina postulada é uma pessoa muito simples, e é grandemente improvável que os fenômenos citados viessem a ocorrer por acaso – isto é, que deveria existir um número tão grande de átomos no Universo, todos eles comportando-se exatamente do mesmo modo que produz a vida humana.