terça-feira, 25 de junho de 2013

Encontro com Dawkins - Um relato pessoal


Deparei-me pela primeira vez com uma obra de Richard Dawkins no final de 1977, quando li seu primeiro livro importante, O gene egoísta. Estava completando minha pesquisa doutoral no departamento de bioquímica da Universidade de Oxford, sob a cordial supervisão do professor Sir George Radda, diretor geral do Conselho de Pesquisa Médica. Na época, esforçava-me por entender como membranas biológicas podiam trabalhar de forma tão competente, desenvolvendo novos métodos físicos para estudar o seu comportamento.

Apesar de que apenas alguns anos depois O gene egoísta iria alcançar o status de peça de veneração que agora desfruta, era obviamente um livro maravilhoso. Eu admirava o modo incrível de Dawkins lidar com as palavras e sua habilidade em explicar com tamanha clareza as cruciais — apesar de frequentemente difíceis — ideias científicas.

Tratava-se de um texto de divulgação científica em sua melhor forma. Não houve nenhuma surpresa, portanto, quando o New York Times comentou que era “o tipo de texto de popularização da ciência que fazia o leitor se sentir um gênio”.

Da mesma forma, somente alguns anos mais tarde se estabeleceria a reputação de Dawkins como o “rottweiler de Darwin”. Porém, mesmo nessa obra inicial, marcas de uma sensível polêmica anti-religiosa podiam ser entrevistas. No tempo de aluno cheguei a acreditar, da mesma maneira que Dawkins, que as ciências naturais exigiam uma visão de mundo ateísta. Mas, naquele momento, não era mais assim. Fiquei naturalmente interessado em ver que tipo de argumentos Dawkins havia desenvolvido em defesa dessa ideia interessante.

O que encontrei não foi em especial persuasivo. Ele oferecia algumas confusas tentativas de dar sentido à ideia de “fé”, sem estabelecer uma adequada base analítica e comprobatória para suas reflexões. Senti-me incomodado por causa disso e mentalmente me programei para escrever algum dia umas palavras em resposta.

Amo as ciências naturais desde que posso me lembrar de amar qualquer coisa. Quando tinha quase dez anos, construí um pequeno telescópio refletor de forma que pudesse estudar as maravilhas dos céus. Encontrei-me encantado pelas imagens cintilantes das luas de Júpiter e das crateras lunares. Fiquei extasiado pela sensação de estar investigando um universo vasto, impressionante, misterioso e bastante subjugado pela experiência. Um velho microscópio alemão — presenteado por um tio-avô que havia sido chefe de patologia no Royal Victoria Hospital, em Belfast — abriu o mundo da biologia para mim (ainda repousa sobre a minha escrivaninha de estudos). Aos 13 anos eu já fora fisgado. Não havia nenhuma dúvida a respeito do que faria pelo resto de minha vida. Eu estudaria as maravilhas da natureza.

Uma mudança de escola, em 1966, injetaria uma nova energia em minha visão. O Methodist College de Belfast havia construído todo um novo setor de ciências naquela época e o equipara de forma esplêndida para os padrões da época. Lancei-me ao estudo das ciências e da matemática, enquanto me especializava em química e física. Foi um diletantismo amplamente recompensado pela excitação mental que gerava. Nessa fase, era uma verdade auto-evidente para mim que as ciências haviam desbancado Deus, fazendo da crença religiosa uma relíquia bastante insensata de uma era passada. No entanto, minhas concepções sobre isso foram significativamente aguçadas pelos eventos no final dos anos 1960.

Uma onda de sentimento anti-religioso varria a face da cultura ocidental. Tom Wolfe captou muito bem tal humor cultural em seu ensaio “The Great Relearning” [O grande reaprender]: tudo seria varrido para longe num frenesi de descontentamento e reconstruído do zero.1 Nunca antes havia sido possível uma radical reconstrução prometéica das coisas como essa. Estava na hora de aproveitar o momento e romper decisivamente com o passado!

A religião seria jogada fora como detrito moral da humanidade, na melhor das hipóteses era uma impropriedade para a vida real e, na pior, um mal, uma força perversa que escravizara a humanidade com suas mentiras e ilusões.

Como a retórica da última oração deve ter deixado bem claro, eu havia me inclinado para o pior cenário. As ciências naturais sugeriam que Deus não era necessário para explicar qualquer aspecto do mundo. Além disso, como muitos nesses dias embriagantes de otimismo e fervor revolucionários, eu havia bebido profundamente nas fontes marxistas, passando a ver a religião como uma ilusão perigosa. Uma conclusão fácil de se chegar, no meu caso, em razão do conflito religioso na Irlanda do Norte; e eu a aceitei no momento sem muita dificuldade ou reflexão.

Possuía agora uma nova razão para amar as ciências. Havia me deparado com um provérbio árabe que parecia resumir as coisas com perfeição: “O inimigo de meu inimigo é meu amigo”. As ciências não eram só intelectualmente fascinantes e esteticamente prazerosas: elas também arruinaram a plausibilidade da crença religiosa e, por conseguinte, abriram caminho para um mundo melhor. A religião era sem dúvida uma superstição medieval “idiota” que nenhum amante da verdade ou uma pessoa moralmente séria poderia tolerar. E isso estava se consolidando. Um luminoso e ateu amanhã estaria raiando em breve. O ateísmo era a única opção para quem se confronta com os fatos. Vi meu futuro — com muita arrogância, devo concordar por completo — em termos de trazer luz e alegria ao pregar o evangelho do ateísmo científico, e até mesmo tentei (sem sucesso) estabelecer uma Sociedade Ateísta em minha escola.

Decidi estudar química na Universidade de Oxford como um meio para atingir esse fim. O curso de química de Oxford era o melhor do país, o que me levou a fixá-lo firmemente como meu objetivo.

A decisão me obrigou a realizar um semestre a mais no Methodist College, a fim de obter formação especial em química avançada para a preparação aos exames de admissão de Oxford, em dezembro de 1970. Pouco antes do Natal, soube que conseguira uma vaga no Wadham College de Oxford para estudar química. Meu cálice de alegria transbordava.

Mas só poderia ingressar em Oxford em outubro de 1971. O que fazer enquanto isso? Meus colegas que também haviam prestado exames de admissão se dispersaram em viagens pelo mundo ou foram ganhar algum dinheiro honesto. Decidi permanecer no colégio pelo resto do ano e usar o tempo me preparando para Oxford. Aprenderia alemão e russo, que seriam úteis para ler periódicos químicos profissionais como o Zeitschrift für physicalische Chemie ou Zeitschrift für Naturforschung. O que também me permitiria ler os trabalhos de Karl Marx, Friedrich Engels e V. I. Lênin em seus idiomas originais. Além disso, teria tempo para consolidar minhas leituras de biologia que havia negligenciado em virtude de me concentrar tão pesadamente em física, química e matemática.

Depois de um mês ou mais de intensos estudos na biblioteca de ciências, havendo esgotado as obras de biologia, encontrei uma seção que antes nunca notara. Intitulava-se “A história e a filosofia da ciência” e estava coberta de pó. Havia dedicado pouco tempo a esse tipo de assunto, tendendo a considerá-lo como uma crítica desinformada das certezas e simplicidades das ciências naturais por aqueles que se sentiam ameaçados por elas — os quais Dawkins chamaria depois de “provocadores da verdade”.2 Filosofia, como teologia, era com certeza uma especulação insensata sobre assuntos que poderiam ser resolvidos por umas poucas experiências honestas. Qual era o problema?

Peguei um título e comecei a ler. Hoje sei que History and Philosophy of Science: An Introduction (1959) [História e filosofia da ciência: uma introdução], de L. W. Hull, é uma iniciação bastante pobre à matéria, em especial por sustentar concepções que foram populares no período vitoriano. Mas me chamou a atenção e me seduziu para coisas mais importantes. Ao terminar a leitura das disponibilidades algo escassas da biblioteca nesse campo, percebi que necessitava fazer algumas reconsiderações muito sérias.

Longe de ser um obscurantismo tolo, que colocava obstáculos desnecessários à condição inexorável do avanço científico, a história e a filosofia da ciência faziam perguntas pertinentes sobre a confiabilidade e os limites do conhecimento científico. E eram perguntas que eu não havia enfrentado até ali. Senti-me como um cristão fundamentalista que de repente descobrira que Jesus não havia pessoalmente escrito o Credo dos Apóstolos, ou como alguém que acreditava na terra plana e fora forçado a mudar de ideia com fotografias o planeta tiradas do espaço. Questões como a indeterminação da teoria pelos dados, mudanças teóricas radicais na história da ciência, as dificuldades para desenvolver uma “experiência crucial” e os problemas extremamente complexos associados à determinação de qual a “melhor explicação” para um conjunto definido de observações acumuladas em mim — tudo isso turvou o que eu tomara como a clara e tranquila água da verdade científica.

As coisas se mostraram muito mais complicadas do que havia pensado. Meus olhos tinham sido abertos e percebi que não havia retorno àquela forma simplista de ciência na qual acreditara antes. Como muitas pessoas na mesma fase de formação, eu desfrutara a beleza e a inocência de uma atitude pueril em relação às ciências e, secretamente, desejava permanecer naquele lugar seguro.

De fato, creio que uma parte de mim quis muito que eu nunca tivesse retirado aquele livro, nunca tivesse feito tais perguntas desajeitadas e nunca tivesse questionado a simplicidade da minha mocidade científica. Mas não havia caminho de volta. Tinha entrado por uma porta e não podia escapar ao novo mundo que então divisara.

Estudar química em Oxford foi, conforme esperava, uma experiência estimulante, alargando meus horizontes mentais e criando desafios novos. Do jeito que as coisas aconteceram, esses horizontes se expandiram em uma direção que nunca teria conseguido antecipar. Ao final de 1971, em meu primeiro semestre na Universidade de Oxford, comecei a descobrir que o cristianismo era bem mais interessante e consideravelmente mais excitante do que pensava. Embora tivesse sido bastante crítico com o cristianismo quando jovem, nunca havia estendido o mesmo exercício crítico ao ateísmo, assumindo por princípio que era, de forma auto evidente, correto e, portanto, isento de ser avaliado desse modo. De outubro a novembro de 1971, passei a perceber que a justificativa intelectual para o ateísmo era muito menos substancial do que supunha. Longe de ser uma verdade auto evidente, parecia descansar em bases bastante frágeis.

Por outro lado, o cristianismo se mostrou intelectualmente mais robusto do que havia pensado.
Minhas dúvidas sobre os fundamentos intelectuais do ateísmo começaram a se sedimentar ao perceber que o ateísmo era na verdade um sistema de crenças, o qual eu havia assumido como uma explicação factual da realidade. Também descobri que sabia bem menos a respeito do cristianismo do que acreditava. Conforme passei a ler livros cristãos e a escutar amigos cristãos explicando sobre aquilo que de fato acreditavam, ficou gradualmente claro para mim que eu havia rejeitado um estereótipo religioso. Tive então que fazer uma reconsideração mais importante. Ao final de novembro de 1971, tomei a minha decisão: virei as costas para uma fé e abracei outra.

Em setembro de 1974, associe-me ao grupo de pesquisa do professor George Radda, no departamento de bioquímica da Universidade de Oxford. Radda estava desenvolvendo uma série de métodos físicos para investigar sistemas biológicos complexos, incluindo técnicas de ressonância magnética. Meu interesse particular estava em desenvolver métodos físicos inovadores para estudar o comportamento de membranas biológicas, entre eles o uso de testes fluorescentes e emissão de pósitrons para investigar transições dependentes de temperatura em sistemas biológicos e seus modelos.3

Mas meu real interesse estava mudando de lugar. Nunca perdi minha fascinação pelo mundo natural. Apenas me deparei com outra coisa que surgia, inicialmente rivalizando com aquela fascinação e, então, complementando-a. Pois o que antes eu havia assumido como uma progressiva guerra aberta entre a ciência e a religião passou a se apresentar como uma sinergia crítica e, ainda, construtiva, com um imenso potencial de enriquecimento intelectual. Comecei a querer saber, de que maneira os métodos de trabalho e os pressupostos das ciências naturais poderiam ser usados para desenvolver uma teologia cristã intelectualmente robusta?4 E o que deveria fazer para explorar essa possibilidade de forma adequada? Passei o verão de 1976 trabalhando na Universidade de Utrecht, graças a uma bolsa de estudo oferecida pela European Molecular Biology Organization [Organização de Biologia Molecular Européia]; e pouco a pouco cheguei à conclusão de que só poderia fazer isso estudando teologia na esfera acadêmica, junto com uma pesquisa avançada sobre a relação entre teologia e ciência.

Por sorte, eu acabara de ser escolhido para uma bolsa de estudos sênior no Merton College que me permitiu continuar minha pesquisa biofísica enquanto, ao mesmo tempo, estudava teologia.
Em junho de 1978, obtive meu doutorado em biofísica e uma graduação com distinção em teologia e me preparava para deixar Oxford a fim de fazer pesquisa teológica na Universidade de Cambridge. Para minha surpresa, recebi um convite para almoçar com um editor sênior da Oxford University Press [Editora Universitária de Oxford]. A universidade é um lugar muito pequeno e fofocas se espalham muito depressa. A editora ouvira falar da minha “interessante carreira atual”, explicou-me o executivo, e tinha um atraente negócio a me oferecer. O gene egoísta de Dawkins gerara um enorme interesse. Será que eu não teria vontade de escrever uma resposta a partir de uma perspectiva cristã?

Sob qualquer ponto de vista, O gene egoísta era uma grande leitura: estimulante, polêmico e informativo. Dawkins possuía aquela rara habilidade de fazer coisas complexas ficarem compreensíveis, sem fazer concessões a seu público. No entanto, ele fizera mais do que apenas tornar a teoria da evolução inteligível. Dawkins estava disposto a expandir suas implicações a todos os aspectos da vida, propondo na verdade o darwinismo como uma filosofia universal de vida, em vez de uma mera teoria científica. Era um material instigante — muito melhor, em minha opinião, do que a obra precedente de Jacques Monod, Chance and Necessity (1971) [trad.em port.: O acaso e a necessidade: ensaio sobre a filosofia natural da biologia moderna. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006], que explorava temas semelhantes. E, como todos os escritores provocativos, detonou debates tão importantes quanto intrinsecamente interessantes, como a existência de Deus e o significado da vida. Seria um livro fascinante para se escrever. Só um tolo, lembro-me de ter pensado na ocasião, poderia resistir a tal convite.

Bem, este sou eu: depois de muito pensar, escrevi uma educada resposta, agradecendo ao meu colega pelo almoço e explicando que ainda não me sentia preparado para escrever semelhante livro.

Havia, na minha visão, muitos outros mais bem qualificados. Seria apenas uma questão de tempo antes de outra pessoa escrever um livro em resposta às ideias de Dawkins. Assim fui para Cambridge pesquisar a teologia cristã, sendo então ordenado na Igreja da Inglaterra. Depois de um período de trabalho numa paróquia inglesa, achei o caminho de volta para Oxford. Embora não fosse mais capaz de empreender uma pesquisa científica, os recursos da excelente biblioteca da Universidade de Oxford significavam que eu poderia manter e ampliar minhas leituras sobre história e filosofia da ciência, como também acompanhar os mais recentes desenvolvimentos experimentais e teóricos nesse campo.

Mas eu não havia esquecido Dawkins. O gene egoísta introduzira um novo conceito e uma nova palavra na investigação da história das idéias: o “meme”. Como a área de pesquisa que esperava seguir era a história das ideias (especificamente da teologia cristã, mas contraposta ao pano de fundo do desenvolvimento intelectual em geral), eu fizera uma extensa pesquisa básica sobre os modelos existentes de como as ideias foram desenvolvidas e recebidas através das culturas. Nenhum deles parecia satisfatório.5 Mas a teoria de Dawkins do “meme” — um replicador cultural — parecia oferecer um vigamento teórico novo e brilhante para se explorar a questão geral sobre as origens, o desenvolvimento e a recepção de ideias, baseando-se na rigorosa investigação científica empírica. Recordo com intensa emoção o momento de completa excitação intelectual quando, em certo dia no final de 1977, percebi que poderia haver uma alternativa aceitável aos ultrapassados e inconvincentes modelos de desenvolvimento de doutrinas que havia explorado e rejeitado naquela fase. Esse poderia ser o futuro?6

Como conhecia o trabalho de Darwin sobre os tentilhões [ou pintassilgos] das Galápagos, isso me ajudou a abordar as evidências com ao menos uma estrutura teórica provisória.7

E assim comecei a investigar usando o “meme” como um modelo para o desenvolvimento de doutrina cristã. Num próximo capítulo, farei um relato mais completo dos meus vinte e cinco anos de avaliação do conceito de “meme”, assim como de sua utilidade. Basta por ora dizer que certamente fui um tanto otimista demais em relação à sua fundamentação empírica rigorosa e ao seu valor como ferramenta para o estudo crítico do desenvolvimento intelectual.

Nesse ínterim, Dawkins produziu uma série de livros brilhantes e provocadores, que devorei com interesse e admiração. Dawkins, depois de O gene egoísta, publicou: The Extended Phenotype (1981) [O fenótipo estendido], O relojoeiro cego (1986), O rio que saía do Éden (1995), A escalada do monte improvável (1996), Desvendando o arco-íris (1998) e, finalmente, a coleção de ensaios O capelão do Diabo (2003). O tom e o foco de sua escrita haviam mudado. Conforme o filósofo Michael Ruse demonstrou em uma resenha de O capelão do Diabo, “a preocupação [de Dawkins] passou de um texto sobre a ciência dirigido a uma audiência popular para um ataque total ao cristianismo”.8 O brilhante divulgador científico se tornou um selvagem polemista anti-religioso, pregando em lugar de debater (ou assim me parece) sua posição.

Considero todos os tipos de fundamentalismo, religiosos ou anti-religiosos, igualmente repugnantes e fiquei bastante decepcionado com tal desenvolvimento de alguém que eu admirava. O juízo de Dawkins sobre a religião chega a ser pouco mais que uma avaliação excêntrica, sendo os extremos retratados como o típico. Os religiosos são descartados como anticientíficos, intelectualmente irresponsáveis ou existencialmente imaturos — isso quando ele está num bom dia.

Apesar do ateísmo de Dawkins ter ficado mais estridente em seu tom e mais agressivo em suas afirmações, não se tornou mais sofisticado em termos de argumentos oferecidos.

Gente religiosa é demonizada como desonesta, mentirosa, tola e trapaceira, incapaz de responder com honestidade ao mundo real, preferindo inventar um falso, pernicioso e ilusório mundo, a fim de atrair o imprudente, o jovem e o ingênuo. Uma linha de pensamento que levou muitos a sugerir, não completamente sem razão, que Dawkins poderia ter sido vítima de um tipo de presunção que os escritores bíblicos associavam aos fariseus. O escritor Douglas Adams recorda que Dawkins declarou um dia: “Realmente não acho que eu seja arrogante, mas fico impaciente com pessoas que não compartilham comigo a mesma humildade frente aos fatos”.9 No entanto, há o embaraçoso fato, que Dawkins parece não querer aceitar, de que existem muitos indivíduos sadios e inteligentes tirando conclusões por completo diferentes das suas, precisamente em virtude do mesmo humilde compromisso com a evidência científica. Talvez eles sejam loucos; talvez, maus, mas, por outro lado, talvez não sejam nem uma coisa nem outra.

Dawkins escreve com erudição e sofisticação sobre assuntos de biologia evolucionista, dominando claramente as complexidades desse campo e de sua vasta literatura de pesquisa. No entanto, quando pretende tratar de qualquer coisa referente a Deus, parece-nos que entra num outro universo. É o universo de um colegial que quer debater sobre a sociedade baseado em calorosos e apaixonados exageros; entusiasmado por algumas evidentes simplificações e mais outras ocasionais deturpações (acidentais, prefiro acreditar) para tornar superficialmente plausíveis certas observações — o tipo de argumentos que uma vez me persuadiram de que o ateísmo era a única opção para um indivíduo pensante, quando ainda era um colegial. Mas isso foi naquela época. E agora, como ficamos?

Havendo lutado com as implicações do método científico para a crença em Deus ao longo da minha adolescência, estava mais do que surpreso com a qualidade dos argumentos oferecidos a favor do ateísmo nos escritos de Dawkins dos anos 1980.

Parece bastante patente para Dawkins que as ciências naturais devem levar a uma visão de mundo ateísta por parte de qualquer pessoa honesta, inteligente. Os que acreditam em Deus são, portanto, desonestos, iludidos ou tolos. No entanto os argumentos que ele propôs nos trabalhos publicados no final dos anos de 1970 e nos de 1980 simplesmente não levavam a essa conclusão. O ateísmo de Dawkins parecia estar fixado sobre sua biologia evolucionária com um velcro intelectual. Minha esperança era que seus textos produzissem um ateísmo novo, intelectualmente revigorado — algo de fato excitante e atraente. Em vez disso, encontrei a mesma retórica pesada e os velhos clichês surrados que bem conheci em meus dias de estudante. Dawkins estava chovendo no molhado, reciclando em vez de renovar as justificativas do ateísmo.

Desapontado, aguardei com paciência por seus trabalhos dos anos 1990, esperando ver argumentos novos e mais persuasivos serem desenvolvidos. Ao contrário, achei os mesmos velhos e embolorados equivalentes ateístas aos argumentos “louco, mau ou Deus” usados por alguns cristãos para provar a divindade de Cristo, 10 associados de maneira muito tênue a alguns interessantes desenvolvimentos da biologia evolucionista. Ficou cada vez mais claro para mim que as bases do ateísmo de Dawkins com certeza repousavam, no final das contas, fora das ciências, e não dentro delas.

O ano 2003 chegou e, com ele, a publicação de O capelão do Diabo. Não é um dos melhores trabalhos de Dawkins, em particular porque se trata de uma coleção de ensaios desconexos, curtos demais para serem capazes de lidar de forma correta com as questões que abordam. Em todo caso, o livro destila cansaço intelectual, como se, a seu autor, tivesse faltado gás intelectual. Nenhum livro apareceu ainda em resposta a Dawkins, além de uma útil introdução às diferenças entre ele e Stephen Jay Gould em assuntos evolucionistas.11

Por fim, no verão de 2003, vinte e cinco anos depois que tal possibilidade tivesse sido discutida pela primeira vez, decidi que estava na hora de escrever uma resposta.

Alguns poderiam esperar que este livro fosse uma refutação religiosa a Dawkins. Estes terão de procurar em outro lugar, pois ele não é nada do tipo. O real assunto para mim é como Dawkins deriva da teoria darwinista da evolução uma confiante visão de mundo ateísta, a qual prega com zelo messiânico e certeza inexpugnável. 12 Como o título do livro indica, há algumas perguntas importantes a serem feitas sobre o tipo de deus que Dawkins declara para ser supérfluo ou sem crédito.13 Que deus está sendo rejeitado? Esse deus mantém alguma relação com conceitos concorrentes de divindade, como o Deus do cristianismo? E essa rejeição é de fato justificada com base nos argumentos que Dawkins oferece?

Portanto, é importante reconhecer desde o início que este livro não é uma crítica à biologia evolucionista de Dawkins. Não proponho debater as concepções específicas de Dawkins sobre a teoria da evolução, mas as conclusões mais amplas que ele tira delas, particularmente as relativas à religião e à história intelectual. Suas opiniões a respeito da evolução devem ser julgadas como um todo pela comunidade científica; minha preocupação — e o campo em que sou competente para me pronunciar — é por excelência a transição extremamente importante e imensamente problemática da biologia para teologia.

É algo por demais aceito que o método científico não pode simplesmente decidir sobre a questão de Deus. A visão geral é que as pessoas costumam chegar a suas concepções religiosas em outras bases e, então, lançam mão de suas ideias científicas para a validação retrospectiva dessas concepções. A ciência é assim usada para ajustar a visão de mundo, e se prova capaz de acomodar pontos de vista teístas e ateus com notável facilidade.

Porém tal concepção aceita pode estar errada, e Dawkins seria capaz de demonstrar que é esse o caso. Os assuntos que propõe são tão importantes que não podem

ser ignorados, ou tratados com breves pronunciamentos ou críticas superficiais, típicas da discussão proposta pela mídia. Eles merecem uma discussão ampla e plena. O que espero encorajar é uma investigação sobre o lugar das ciências naturais na formatação do mundo de nossas mentes e da cultura em que vivemos, com base nos textos publicados por Dawkins.

Dawkins empunha a força explicativa do darwinismo numa mão, e os defeitos estéticos, morais e intelectuais da religião na outra; conduzindo a pessoa honesta direta e inexoravelmente ao ateísmo. A humanidade atinge a maturidade. Ela deixa para trás suas ilusões. Podemos “deixar a fase do choro de bebê e finalmente atingir a maioridade”.14 Embora eu trate da substância das concepções religiosas de Dawkins em certas ocasiões neste livro, meu interesse se liga em especial à razão pela qual ele acredita que elas estão corretas, em vez do que elas são em si mesmas. Este livro é um confronto crítico com a visão de mundo de Dawkins, e tem a intenção de perguntar se a afamada agressividade de seu ateísmo está realmente fundamentado nos argumentos que ele apresenta.

A hostilidade de Dawkins contra a religião é profunda e não se baseia em um único tópico específico. Podemos detectar quatro razões interconectadas de hostilidade ao longo de seus escritos:

1. Uma visão de mundo darwinista torna a crença em Deus desnecessária ou impossível. Embora indicada em O gene egoísta, a ideia é desenvolvida em detalhes em O relojoeiro cego.
2. A religião faz afirmações fundamentadas na fé, o que representa o abandono da busca da verdade em termos rigorosos e baseados na evidência. Para Dawkins, a verdade é fundamentada em provas evidentes; qualquer forma de obscurantismo ou misticismo fundamentada na fé deve ser vigorosamente combatida.
3. A religião oferece uma visão de mundo empobrecida e pálida. “O universo apresentado pela religião institucionalizada é um universo medieval estreito, pequeno e por demais limitado”.15 Ao contrário, a ciência oferece uma concepção ousada e brilhante do universo, percebido como grandioso, belo e impressionante. Essa crítica estética à religião foi em especial desenvolvida em 1998, na obra Desvendando o arco-íris.
4. A religião leva ao mal. Ela é como um vírus maligno infectando as mentes humanas. Esse não é um juízo estritamente científico, pois, como Dawkins observa com frequência, as ciências não podem determinar o que é bom ou mau. “A ciência não possui um método para decidir sobre o que é ético”.16 Porém sua objeção à religião é profundamente moral, profundamente arraigada na cultura e história ocidentais, devendo ser considerada com a maior seriedade.

Portanto qual dessas razões é a real base para o ateísmo de Dawkins? Quais são as hipóteses nucleares e quais as auxiliares, tomando emprestada a linguagem do empirismo? Em suas reflexões sobre o próprio desenvolvimento intelectual, Dawkins costuma apresentar seu ateísmo como havendo surgido naturalmente de sua progressiva convicção no total poder explicativo do darwinismo — um desenvolvimento iniciado ainda durante os anos finais na Oundle School. Mas o que acontece se o ateísmo de Dawkins for de fato fundamentado em considerações morais e, só então, reposicionado em sua atividade científica?

Assim, por que escrever um livro como este? Podem ser dadas três razões. Primeiro, Dawkins é um escritor fascinante; tanto em termos de qualidade das ideias que desenvolve quanto pela desenvoltura verbal com que as defende. Qualquer um que esteja remotamente interessado no debate de ideias encontrará em Dawkins um importante parceiro. Agostinho de Hipona escreveu uma vez sobre o “eros da mente”, definindo-o como um profundo desejo da mente humana em dar sentido às coisas — uma paixão por entender e conhecer. Qualquer um que compartilhe tal paixão desejará entrar no debate iniciado por Dawkins.

E esse pensamento está por trás da minha segunda razão para escrever este livro. Sim, Dawkins parece, a muitos, ser imensamente provocador e agressivo, descartando visões alternativas com uma pressa indecente, ou tratando as críticas a suas concepções pessoais como um ataque a toda a atividade científica. Entretanto, semelhante tipo de retórica acalorada é encontrada em qualquer debate público, seja religioso, filosófico ou científico. Na verdade, é isso o que faz os debates públicos serem interessantes e os põe acima do ramerrão tedioso da discussão acadêmica normal, a qual invariavelmente parece vir acompanhada de infinitas notas de rodapé, citações de autoridades de peso, apesar de maçantes; e cautelosos eufemismos opressivamente acompanhados de qualificativos.

Quão mais excitantes são os debates aguerridos, sem restrições nem preocupações com as sufocantes convenções dos rigorosos estudos acadêmicos! Dawkins, com toda clareza, deseja provocar tais debates e enfrentamentos; seria descortês não aceitar seu convite.

Possuo, porém, uma terceira razão. Escrevo como um teólogo cristão que acredita ser essencial ouvir com seriedade e atenção a crítica à minha disciplina e respondê-la de maneira adequada. Um dos motivos para levar Dawkins tão a sério é descobrir o que se pode aprender com ele. Como qualquer honesto historiador do pensamento cristão sabe, o cristianismo se obriga a uma constante revisão de suas ideias à luz das Escrituras e da tradição, perguntando-se sempre se certa interpretação contemporânea de uma doutrina é adequada ou aceitável. Conforme veremos, Dawkins oferece, em minha opinião, uma poderosa e convincente contestação a um modo de pensar a doutrina da criação que influenciou tremendamente a Inglaterra no século XVIII e que ainda hoje encontra alguns abrigos. Ele é um crítico que precisa ser ouvido e levado a sério.

Mas basta de preliminares. Vamos seguir em frente e começar a investigar a visão de mundo darwinista que Dawkins tanto investiga e recomenda.

Alister McGrath
Oxford

Referências:
1 Tom Wolfe, “The Great Relearning”. In Hooking Up, p. 140-5. Londres: Jonathan Cape, 2000 [trad. em port.: Ficar ou não ficar. R. Janeiro: Rocco, 2001].
2 A Devil’s Chaplain, p. 16 [trad. em port.: O capelão do Diabo: ensaios escolhidos].
3 Para alguns exemplos, ver Alister E. McGrath, Christopher G. Morgan, e George K. Radda, “Photobleaching: A Novel Fluorescence Method for Diffusion Studies in Lipid Systems”. Biochimica et Biophysica Acta 426 (1976), p. 173-85; idem, “Positron Lifetimes in Phospholipid Dispersions”. Biochimica et Biophysica Acta 466 (1976), p. 367-72.
4 Gastei a melhor parte de vinte e cinco anos para entender como fazer isso: sobre o resultado, ver Alister McGrath, A Scientific Theology, 3 v. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2001-3. Para uma abordagem mais básica, ver Alister McGrath, The Science of God: An Introduction to Scientific Theology. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2004.
5 Um dos modelos que inicialmente me despertou maiores esperanças foi o de Pierre Rousselot, “Petit théorie du développement du dogme”. Recherches de Science religieuse 53 (1965), p. 355-90.
6 Eu não era o único que estava tão entusiasmado com a nova idéia de Dawkins: ver Stephen Shennan, Genes, Memes and Human History: Darwinian Archaeology and Cultural Evolution. Londres: Thames & Hudson, 2002, p. 7.
7 Mais tarde me perguntei se havia dado muita importância a esse incidente no desenvolvimento intelectual de Darwin: ver Frank J. Sulloway, “Darwin and His Finches: The Evolution of a Legend”. Journal of the History of Biology 15 (1982), p. 1-53.
8 Michael Ruse, “Through a Glass, Darkly”. American Scientist 91 (2003), p. 554-6.
9 Citado por Robert Fulford, “Richard Dawkins Talks Up Atheism with Messianic Zeal”. National Post November 25, 2003.
10 Eles argumentam que Jesus de Nazaré era ou louco, mau ou Deus. Não sendo nem o primeiro nem o segundo, ele deveria ser então o terceiro. O argumento trabalha propondo apenas três soluções para um assunto imensamente complexo, descartando duas delas. A principal crítica feita a tal raciocínio é sua recusa simplista em considerar alternativas além das que ele depende.
11 Kim Sterelny, Dawkins vs. Gould: Survival of the Fittest. Cambridge: Icon Books, 2001. As idéias de Dawkins, é claro, são tratadas em vários artigos e seções de livros, por exemplo, veja Michael Poole, “A Critique of Aspects of the Philosophy and Theology of Richard Dawkins”. Science and Christian Belief 6 (1994), p.41-59; Luke Davidson, “Fragilities of Scientism: Richard Dawkins and the Paranoid Idealization of Science”. Science as Culture 9 (2000), p. 167-99; Holmes Rolston, Genes, Genesis and God: Values and Their Origins in Natural and Human History. Cambridge: Cambridge University Press, 1999; Keith Ward, God, Chance and Necessity. Oxford: One World, 1996, p. 105-30.
12 Ver Fulford, “Richard Dawkins Talks Up Atheism with Messianic Zeal”.
13 Para questões relacionadas à concepção de Deus defendida por Darwin, ver Cornelius G. Hunter, Darwin’s God: Evolution and the Problem of Evil. Grand Rapids, MI: Brazos Press, 2001.
14 “Alternative Thought for the Day”; BBC Radio 4, 14 de agosto de 2003.
15 Richard Dawkins. “A Survival Machine”. In John Brockman (ed.). The Third Culture, p. 75-95. Nova York: Simon & Schuster, 1996.

16 A Devil’s Chaplain, p. 34 [trad. em port.: O capelão do Diabo].

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